Título: O equívoco do alvo mais fácil
Autor: Leo , Sergio
Fonte: Valor Econômico, 12/01/2009, Brasil, p. A2

Raras das vozes contrárias à política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva apontam o alvo verdadeiro. É difícil ver críticas diretas ao próprio presidente da República, um governante com 80% de popularidade, reconhecido entre as principais personalidades internacionais. Em geral, os mísseis contra a política externa miram o Itamaraty, mas ganham a fúria de uma jihad quando o alvo é o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia.

Ao contrário do que se diz, porém, a atuação de Garcia não é uma das invenções do governo Lula nunca antes acontecidas neste país. Como descreve o embaixador Sergio Danese em seu elogiado "Diplomacia Presidencial" (Topbooks, 1999), a "tradição" de recrutar no Itamaraty assessores presidenciais para política externa só começou com a escolha de Rubens Ricupero por Tancredo Neves, em 1985. O posto foi criado por Getúlio Vargas, que nomeou um acadêmico. O maior predecessor de Garcia é uma lenda, o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt.

A autonomia de Schmidt em relação ao Itamaraty era de fazer o desembaraçado Garcia parecer ajudante de ordens do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Schmidt, operando por JK, desprezava as cadeias de comando da diplomacia. Ele concebeu - e fez os embaixadores de então engolirem - a famosa Operação Pan-Americana (OPA), marca da política externa de JK. A OPA, criada num período de trapalhadas dos EUA na região, deu origem ao Banco Interamericano de Desenvolvimento, e seria assumida pela diplomacia, pragmaticamente.

Um assessor palaciano tem mais autonomia para agir que diplomatas, presos aos rituais do cargo. É figura essencial na diplomacia presidencial. Garcia, velho conhecido de boa parte dos governantes sul-americanos, é visto no continente como extensão oficiosa da voz de Lula, e , não raramente, seguindo diretrizes traçadas com Amorim, leva aos governos da região mensagens do Planalto que não conviriam à linguagem diplomática. Evidentemente, existem atritos nas relações entre Garcia e o Itamaraty. Mas, no caso dele, os desentendimentos se dão mais pelo desconforto com a franqueza e o tom nas manifestações públicas do acadêmico e militante do que por divergências significativas de visão política.

O estilo agressivo de algumas declarações públicas do assessor é típico de acadêmicos e empresários pouco acostumados às metamorfoses semânticas que as frases de efeito das autoridades costumam sofrer quando chegam às manchetes de jornal. O que ele fala não pode ser considerado posição de Estado. Mas a essência do que diz Garcia é fiel ao pensamento de Lula. É Lula, não Garcia, quem sustenta a tese favorável a uma relação "generosa" com vizinhos belicosos, como o equatoriano Rafael Correa ou o boliviano Evo Morales. Quem ataca Garcia, em geral, gostaria de tocar no presidente. Não o faz por cálculo político ou pessoal.

Na semana passada, em entrevista ao Valor, Garcia manifestou, pouco diplomaticamente, uma opinião disseminada em partidos da esquerda, em círculos da diplomacia e mesmo entre pessoas de parca ligação com o governo brasileiro: assim como é inquestionavelmente terrorista o disparo de mísseis contra Israel pelo grupo islâmico Hamas, a invasão do Exército israelense, condenada internacionalmente, com a morte de centenas de mulheres e crianças, viola princípios básicos do direito internacional. "Isso é terrorismo de Estado, me desculpe", classificou o assessor.

Garcia usou termos fortes para uma autoridade, mas até o embaixador de Israel no Brasil reconheceu não ver a declaração como posição oficial do governo. Garcia, aliás, fez questão de também declarar o apoio à integridade territorial de Israel, contra os atos terroristas do Hamas. Garcia lembrou, ainda, o interesse de Lula em, apesar de tudo, visitar o país neste ano, para entendimentos comerciais e políticos. Mas os sagrados direitos de Israel não podem servir de pretexto ao governo israelense para uma matança que não discrimina terroristas e cidadãos, acredita. Não está sozinho ao dar esse recado. Lula, sem endossar a acusação de terrorismo de Estado, comparou a reação de Israel aos mísseis do Hamas a jogar bombas contra palitos de fósforo.

Não há dúvidas sobre o inferno a que o Hamas condena a comunidade judaica sujeita aos ataques freqüentes de mísseis e à rotina dos alarmes antiaéreos. Mas incomparavelmente dura, também, é a vida dos palestinos amontoados em precárias condições na faixa de Gaza, forçados a racionamento cruel de comida, água e energia, obrigados a cavar túneis clandestinos para contrabandear bens de primeira necessidade do Egito (túneis usados também para tráfico de armas, agora bombardeados por Israel).

Usar o purgatório das cidades israelenses como justificativa para o massacre em Gaza é dar razão aos que defendem os mísseis do Hamas como resposta à situação insuportável dos palestinos. A violência na região não é defensável. Como argumenta, aliás, Garcia. Encontrar nas declarações dele um insulto à comunidade judaica é, mais que exagero, manipulação política. Nada nova, aliás, em se tratando de ataques ao assessor de Lula.

Talvez o mais freqüente uso político das ações de Garcia seja o infeliz incidente, em julho de 2007, quando ele, acreditando-se na privacidade do gabinete, reagiu, com o cenho fechado e um gesto obsceno, a uma notícia do "Jornal Nacional" que desmoralizava tentativas de responsabilizar exclusivamente o governo pelo acidente do avião da TAM, naquele ano. O que amigos do assessor definem como desabafo é lembrado como uma "comemoração" sempre que se quer desmoralizar o assessor. Parece maldição do cargo: Ricupero, o mais conhecido antecessor de Garcia, perdeu o Ministério da Fazenda com a divulgação, na TV, de uma brincadeira mal pensada pronunciada quando acreditava estar na intimidade.

O ataque pessoal e virulento a Garcia, por opções de política externa do governo ou do partido, é manifestação de uma doença infantil do debate político brasileiro. São mais maduros os democratas que se opõem às políticas de Lula sem falsos pretextos ou bode expiatório, e apontam baterias para seu verdadeiro alvo. O presidente da República.