Título: A China, Madoff e os treasuries
Autor: Pesek , William
Fonte: Valor Econômico, 12/01/2009, Opinião, p. A11

As livrarias de Pequim fariam bem em manter em suas prateleiras livros de Johann Wolfgang von Goethe. Sua obra ajudará as autoridades chinesas a compreender a "pacto faustiano" no qual estão envolvidas com os EUA.

A referência, aqui, é a abrir mão de princípios em troca de ganhos passageiros. Na literatura, o Fausto de Goethe é um mítico alquimista alemão que assume um um pacto com o demônio. E é nessa condição, essencialmente, onde a China, maior detentora estrangeira de dívida americana, se encontra no momento em que os EUA reaquecem sua economia.

O secretário do Tesouro, Henry Paulson, não é o diabo, mas em seu mandato os EUA transformaram-se numa enorme máquina emissora de endividamento. O Birô de Orçamento do Congresso (BOC) diz que o déficit americano mais que dobrará neste ano, para pelo menos US$ 1,18 trilhão, o maior desde a Segunda Guerra Mundial.

Barack Obama tem planos ainda maiores. As estimativas do CBO não incluem o custo do pacote de estímulo do presidente eleito, que provavelmente acrescentará pelo menos US$ 750 bilhões ao total nos próximos dois anos. No ano passado o déficit totalizou US$ 455 bilhões. Os EUA precisam do dinheiro chinês mais do que nunca.

"Passei a maior parte dos primeiros dois trimestres de 2008 embasbacado diante do ritmo de acumulação das reservas chinesas", escreveu, em Nova York, em seu blog, o economista Brad Setser, do Conselho para Relações Exteriores, nesta semana. "Suponho que passarei os primeiros trimestres de 2009 pasmo diante da escala do déficit fiscal americano".

Todo esse endividamento poderá fazer estourar o que Bill Gross, co-diretor da Pacific Investment Management Co., de Newport Beach, Califórnia, denomina "um mercado com algumas características de bolha". Isso não está escapando à atenção das autoridades em Pequim.

A China detém US$ 653 bilhões em títulos do Tesouro dos EUA, e há sinais de que os chineses estão perdendo seu apetite por dívida americana. A expectativa é de que a segunda maior economia asiática venha a cortar a presença de dólares em suas reservas de US$ 1,9 trilhão, e, possivelmente, substancialmente.

Os EUA estão, afinal de contas, agindo em detrimento de seu melhor cliente. Assim como acionistas abominam quando as companhias diluem suas ações com novas ofertas, os gestores da dívida chineses não podem ficar contentes com os planos do Tesouro.

Além de seu pacto faustiano, poderíamos nos perguntar se a China está também envolvida num "pacto madoffiano".

Não, o Tesouro não está armando uma enorme fraude do tipo pela qual é acusado o financista Bernard Madoff. Mas o cenário da dívida de US$ 5,3 trilhões mais se assemelha a um esquema Ponzi do que a um mercado.

Madoff personifica a ganância, falta de transparência e a confiança perdida que acompanharam a queda de graça dos EUA. Apesar de céticos terem questionado a veracidade do desempenho de Madoff ao longo de anos, as agências competentes não tomaram providências. Elas acreditaram nas afirmações e números de Madoff.

A razão pela qual as empresas de classificação de crédito não estão alarmadas e ameaçando rebaixar o status creditício americano é sua confiança. Existe uma profunda convicção de que esse emissor de moeda de reserva - não endividado em moeda estrangeira - sempre cumprirá suas obrigações. Isso não significa que estejam errados os críticos em cuja opinião o mercado transformou-se no maior esquema de pirâmide do mundo.

O que mantém o esquema funcionando é a idéia de que sempre haverá dinheiro novo entrando para salvar os investidores já participantes. O funcionamento apresenta uma dinâmica muito semelhante ao de um esquema de pirâmide. Os detentores de títulos do Tesouro americano não perderão tudo, como poderá ocorrer com os investidores ludibriados por Madoff. Mas a China vai sofrer, quando estrangeiros venderem títulos do Tesouro dos EUA e os rendimentos dispararem.

A questão é: com que agressividade a China irá se proteger do que parece cada vez mais um "conto do vigário". Economistas do Deutsche Bank AG em Frankfurt, por exemplo, estimam que a China reduzirá a participação de dólares (em suas reservas) para cerca de 45% neste ano, de mais de 70% em 2003.

Evidentemente, tendo se envolvido nesse arranjo, a China tem dificuldades para dele escapar. A função de sua economia é em larga medida vender produtos industrializados no exterior.

"Não estou sugerindo que esse modelo seja irrevogável", diz David Gilmore, sócio na Foreign Exchange Analytics, em Essex, Connecticut. "Como qualquer coisa em economia, o cenário evolui. Mas em meio a um desaquecimento mundial que o mundo não viu desde a Segunda Guerra Mundial, agora é a hora para que a China descarte o modelo econômico existente e adote um novo".

Desenvolver uma demanda interna é um objetivo de longo prazo que exige habilidade na condução de políticas e um nível elevado de tolerância a turbulência no curto prazo. Não está claro se 2009 é o ano em que deva ser promovida tal transição.

O melhor cenário para a China é que os consumidores americanos retomem a compra de seus produtos. A China tem auto-interesse em nada fazer que complique as coisas para a economia de maior porte. Desfazer-se dos títulos do Tesouro americano ganharia as manchetes, precipitaria uma aversão ao dólar e prejudicaria o crescimento americano.

Isso não significa que a China deseje arriscar mais dinheiro num esquema Ponzi em seus estertores. O mundo está cheio de exemplos de como isso pode terminar. E a China, com sua população de 1,3 bilhão de pessoas, certamente poderia usar uma parte desse dinheiro em casa, num momento em que sua própria economia revela-se claudicante.