Título: A política está de volta
Autor: Melo , Carlos
Fonte: Valor Econômico, 14/01/2009, Opinião, p. A10

A crise financeira internacional evoluiu para uma crise econômica e rapidamente foi comparada por economistas e historiadores à Grande Depressão de 1929. "29" ajudou a revelar o mundo desajustado do Pós-Guerra (1914-18) e, de algum modo, contribuiu para a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-45). Seja como tragédia, seja como farsa, a história nem sempre se repete, é claro. Todavia, a atual crise, a exemplo daquela, também revela desajustes e contradições que a excedem. Há uma brutal ausência de poder político e ação governamental, e a "atmosfera" parece indicar a inexistência de lideranças políticas capazes de articular alianças e propor - viabilizando-as politicamente - alternativas que estanquem a hemorragia presente e evitem que maiores conflitos se materializem mais adiante.

O recente vácuo de autoridade ocorrido nos EUA - um governo mais que desgastado e uma eleição da qual ainda não emergira uma liderança legitimada - foi efeito e não causa do vácuo de poder político em todo o mundo, obedece a dinâmicas mais profundas e não é exclusivo do país de George W. Bush. Na Europa, por exemplo, esse vácuo também se estabeleceu. Foi necessário que um burocrata das finanças se levantasse - o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown - para que os demais "líderes" se ajustassem a uma postura necessariamente mais ativa. Mr. Brown não é político, porém, fez-se "Flash Gordon" pelas circunstâncias e paralisia dos demais, e ocupou espaço em virtude da omissão geral.

Os "políticos de profissão" - Sarkozy, Merkel, Berlusconi, Zapatero, Durão Barroso, por exemplo - oscilaram entre a dissonância e a letargia, comprometendo a imagem da União Européia. O fato demonstrou que se algum espectro ronda a humanidade, esse espectro é a ausência de liderança política. E não apenas nos Estados Unidos e na velha Europa.

Também no Leste, uma miríade de países em dificuldades com a democracia tampouco revela diferenciada capacidade política ou a emergência de um novo modo de conduzir "a coisa pública". Na Rússia, por exemplo, segue seu padrão tradicional de poder unipessoal, autoritário e atrelado à KGB do momento. Na China, a proeminência do Partido e o represamento de enormes contradições criam condições de fervura de um caldeirão que pode mais adiante explodir. Na América Latina, assiste-se a uma confusão que não causa surpresas: pragmáticos de um lado (Bachelet, Uribe, Garcia, Lula); ideológicos de outro (Chávez, Morales, Correa, Lugo) e os perdidos da vez (Kirchner) reúnem-se num grande resort, com todas as colorações, no mar tropical da Costa do Sauípe, para não decidir rigorosamente nada.

Como explicar o vazio? As causas são várias e tenho perseguido-as há algum tempo. Mas, para início de conversa, pelo menos três grandes eixos explicativos podem ser mencionados: 1) A visão economicista dos últimos anos que, dando pouco ou nenhuma importância aos políticos, acabou por enfraquecer e retirar legitimidade da grande Política, afugentando os melhores quadros e causando ojeriza às novas gerações; 2) Um ciclo de crescimento econômico realmente extraordinário, capaz de prescindir da Política e criar riqueza, independente e mesmo apesar dos políticos, transformou o bom momento em péssimo conselheiro, inibindo o necessário processo de avanços e reformas; 3) Lideranças carentes de um conjunto de características eminentemente políticas, como a perfeita compreensão do momento histórico, a antevisão dos acontecimentos, a sagacidade, a capacidade de diálogo, a determinação programática, além da ousadia e da coragem de decidir. São os elementos principais ou, ao menos, mais aparentes.

Mas, o que tem sido não poderá continuar a ser. A crise é muito mais que uma "marolinha" e seus ventos ou varrerão entulhos de um tempo que já acabou, ou seus entulhos ficarão alhures esperando a eclosão de novas crises até que uma crise política maior se coloque como regeneradora de todo o sistema. Diante de sua gravidade, a crise pode dar em tudo, menos em nada.

Ao contrário do que se imagina, não é do ventre do destino que nasce o grande líder, nem é apenas com a sorte que se forma um conjunto de lideranças. A vida do indivíduo é apenas um referencial, e a sorte só pode ser entendida como a dinâmica da história, o resultado de interações. São as circunstâncias e as respostas que a política fornece a eles que formam e que forjam o grande líder. Biografia e história se fundem e se confundem; a necessidade imposta pelo momento é dínamo da liderança e, portanto, da mudança. Daí provém os grandes nomes, os personagens que ficam para a história: César, Alexandre, Napoleão, Roosevelt, Churchill.

No final dos anos 70 e ao longo dos 80, no século passado, a história permitiu que uma geração de lideres se impusesse aos fatos, contornando-os e moldando um novo mundo que, agora, parece se desfazer. O fim do Welfare State, o esgotamento do chamado "socialismo real" e a Guerra Fria que se decidia despertou gente como Helmut Schmidt, Margareth Thatcher, Ronald Reagan, François Mitterrand, Felipe González, Mário Soares, Mikhail Gorbachev, Helmut Kohl e, mais tarde, Bill Clinton. Enfim, a crise exige política e - por mais que não se goste deles - a política exige políticos; exige liderança. É isto que organiza o mundo e aí parece estar a origem e o risco de prolongamento da presente crise: a atual falta de política e de lideranças política.

Todavia, o fundo do precipício é também o início da escalada. O momento parece possuir a mesma força e capacidade do passado: impor transformações profundas e parir seus agentes. O desaparecimento daquilo que se supunha ser riqueza, o desemprego, a recessão e a necessária busca de um novo padrão de desenvolvimento enlaçarão a nova liderança política. A que temos hoje - depauperada e sem brilho - já mostrou ser incapaz. Mas um novo tipo terá que emergir, revelando-se à altura do momento. É esse o sentido último da política e o verdadeiro destino dos que se dedicam a ela, de verdade: compreender a história, encarar e vencer seus desafios.

Barack Obama pode ser um desses líderes, despertado pelas circunstâncias, robustecido pelo momento. Até aqui, demonstrou notável habilidade para superar os obstáculos que se lhe colocaram no caminho da Presidência. À natural dificuldade eleitoral - ampliada pela resistência à sua personalidade e etnia - soube dar respostas criativas e inovou em comunicação e utilização dos meios. Mas isso não basta. O momento requerer mais. Será testado em sua capacidade de compreender a história, de romper preconceitos e clichês, de propor saídas e de articular-se com outros líderes. Veremos se chegará aos fins que anuncia. Dada a força econômica e cultural americana, para o bem ou para o mal, sua atuação servirá de parâmetro para toda a humanidade.

No Brasil, não será diferente. Por ora, questões menores ainda ocupam o centro do palco, mas a política com "P" maiúsculo será o imperativo para sair da crise e avançar rumo a 2010, o ano eleitoral já sem a presença do presidente Lula e prenhe de indagações e incertezas quanto à liderança. Popularidade e carisma não bastarão - menos ainda a retórica. Um novo padrão precisa se estabelecer: a política - e não mais apenas a economia - como a "arte" que organiza a sociedade, estabelece o equilíbrio e define os marcos do possível. Aos políticos caberá compreender o momento, pesar, julgar e decidir. O certo é que a política está de volta. Esta é a novidade embalada pela crise, acalentada pela posse de Barack Obama.