Título: América Latina em 2009: acabou a festa
Autor: Santiso , Javier
Fonte: Valor Econômico, 13/01/2009, Opinião, p. A11

A América Latina viveu uma grande festa macroeconômica ao longo dos últimos anos. Altas taxas de crescimento, inflação reduzida aos menores patamares históricos e orçamentos equilibrados ou até flertando com gordos superávits em alguns casos. Ao mesmo tempo, 40 milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza durante os últimos cinco anos.

Como conseqüência dessa melhora, a América Latina encarou a crise mundial com mais de 75% do PIB regional com classificações de risco de crédito dentro do "grau de investimento", algo nunca ocorrido no passado. Em 2008, a região apresentava uma maior solvência, com 70% de sua dívida coberta por reservas internacionais - patamar bem acima dos índices verificados no Leste Europeu, por exemplo. Também soube capitalizar a maior confiança internacional: durante o período 2003-2007, a América Latina recebeu um volume recorde de investimentos estrangeiros, superior a US$ 300 bilhões. Suas multinacionais lançaram-se a outros mercados comprando importantes ativos, inclusive em países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Os países da região, em sua maioria, reduziram drasticamente seus níveis de alavancagem e, em particular, as dívidas denominadas em dólares, algo que, no atual período de desvalorizações cambiais generalizadas, corrobora, caso ainda seja necessário, como a administração dessas economias foi - com algumas exceções - acertada. Em 2009, salvo exceções como o México, a maioria dos países ainda está crescendo, embora a taxas reduzidas (entre 1% e 2%, na média, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) ou bancos como J.P. Morgan e Deutsche Bank).

Certamente, todos deparam-se com um quadro mais adverso e difícil. Todas as grandes economias da OCDE estarão em recessão e a Ásia, em desaceleração. É possível que vejamos algum outro caso de inadimplência (o Equador começou a festa no fim de 2008), em particular, no âmbito empresarial. No conjunto, porém, os grandes países da região foram capazes de escapar do temporal e a solidez com a qual ancoraram suas economias permite-lhes enfrentar as ondas ainda por vir com certa lucidez. Os desafios não deixam de ser consideráveis. Alguns são de curto prazo, outros, mais de médio prazo.

No curto prazo, são diversos os canais de contágio da crise. A partir do ponto de vista da economia real, existem dois mecanismos de transmissão, ambos vinculados à contração da demanda mundial: o comércio e as matérias-primas.

Do ponto de vista comercial, a dependência da região em relação aos Estados Unidos e Europa, regiões que estarão em recessão em 2009 - é grande. Historicamente, a América Latina viu-se afetada pelas retrações recentes nos EUA. A novidade é que a Europa também estará em recessão neste ano. Mais de 65% das exportações latino-americanas dirigem-se a essas duas regiões, com o restante indo para a Ásia e para parceiros regionais. Alguns países latino-americanos estarão mais expostos do que outros por meio desse canal comercial. É o caso, em particular, do México, cujo comércio continua sendo muito dependente dos EUA (85% de suas exportações). Outros, como o Chile, possuem um comércio mais diversificado, em direção à Ásia, continente que absorve mais de 35% das exportações chilenas, por exemplo. Contudo, por serem muito dependentes de matérias-primas (representam mais de 60% das exportações da América Latina), todos irão ver-se afetados negativamente pelas baixas do petróleo, cobre ou soja.

As contas fiscais poderiam paulatinamente ressentir-se de arrecadações menores e da necessidade de relançar a economia via aumento dos gastos públicos. A dependência financeira da região, embora tenha diminuído, será uma das grandes vulnerabilidades se a escassez de liquidez mantiver-se mais tempo do que o previsto em 2009. Os fluxos de remessas, aplicações e investimentos diretos estão em queda, enquanto as emissões de títulos de dívidas a serem realizadas em 2009 deverão ser dominadas pelos países da OCDE (estima-se que os EUA poderão lançar mais de US$ 2 trilhões, dentro de um total de US$ 3 trilhões na OCDE), deixando pouco espaço para os emergentes.

A estes canais clássicos de transmissão, vinculados aos mecanismos generalizados de desalavancagem e de aversão ao risco, que provocarão uma fuga em direção aos ativos e países mais seguros, pode adicionar-se outro, inédito, ligado ao setor bancário. Tradicionalmente, nos anos 90, considerou-se que a forte internacionalização do sistema financeiro era positiva para fugir das crises. Isso era verdadeiro quando estas se originavam nos países emergentes. Hoje em dia, a situação é muito diferente: a crise afeta principalmente os sistemas financeiros dos países da OCDE, em particular, o dos EUA. A internacionalização dos sistemas bancários pode, portanto, converter-se em um canal de transmissão, especialmente quando as matrizes estão debilitadas, precisam repatriar liquidez e/ou, ao mesmo tempo, apertar seus sistemas de controle de risco, algo que está na crista da onda hoje em dia nos EUA. Além disso, outros bancos se depararão neste ano com situações de recessão em suas bases de operação nacionais, como será o caso dos espanhóis e ingleses, também fortemente presentes na América Latina. Deste ponto de vista, países como o México encontram-se em uma situação de dependência maior, com 80% de seu sistema bancário em mãos estrangeiras. O Brasil está em situação bem diferente, com apenas 30% do sistema bancário pertencendo a capitais externos.

Sem dúvida, 2009 será um ano difícil para a região. A crise, no entanto, passará. No longo prazo, a região voltará a expandir-se, à medida que os EUA se recuperem e os preços das matérias-primas também retomem sua marcha ascendente. Um desafio, contudo, ficará pendente - algo que a região deverá encarar no médio prazo, enquanto se aproxima o ciclo político que se intensificará a partir de 2010: a redução das desigualdades. É um desafio que passará - como destacamos no Panorama Econômico Latino-Americano da OCDE, de 2009, dedicado exclusivamente a esse assunto - por uma política fiscal com mais redistribuição, ou seja, que não propicie apenas crescimento, mas também desenvolvimento.