Título: It's all over now, baby blue
Autor: Málaga , Tomás
Fonte: Valor Econômico, 15/01/2009, Opinião, p. A8

As pessoas se perguntam por que uma expansão do gasto público é vista com bons olhos nos Estados Unidos, mas é freqüentemente condenada no Brasil. Afinal, após cair a 7,5%, a taxa de desemprego começa a aumentar e a economia certamente não mostra o mesmo vigor de um ano atrás.

A questão é que a crise internacional tem tido impactos distintos nas economias. No Brasil, os principais efeitos têm sido a restrição financeira e a queda da demanda dos produtos exportados. Os sintomas de uma restrição de financiamento são claros: o setor privado está tendo que pagar rapidamente dívidas contraídas no mercado internacional e financiar o comércio exterior tornou-se uma tarefa difícil. Este fenômeno certamente não é exclusivo do Brasil, o crescimento do comércio internacional está se desacelerando fortemente e o preço das exportações está caindo pela falta de demanda. Este efeito está cada vez mais forte, pois à medida que cai a renda mundial, a demanda cai mais, afetando ainda mais os preços e as quantidades exportadas, num movimento oposto ao observado nos últimos anos.

Reconhecer os impactos desta queda dos preços e dos volumes exportados sobre a economia é fundamental para a política econômica, pois descarta a necessidade de uma política monetária mais estrita, como erroneamente advogaram alguns economistas que temiam o repasse da desvalorização cambial para a inflação. O motivo principal para este equívoco foi achar que a desvalorização seguia o padrão de crises anteriores em que o investidor doméstico fugia do real, e não um novo padrão imposto pela queda da demanda de exportações transmitindo uma queda de demanda internacional. O Banco Central, em sua última decisão, descartou esta hipótese, ao relatar que a maioria dos membros do Copom analisou a possibilidade de cortar as taxas de juros já. Porém, outras áreas do governo repetidamente têm manifestado intenções de aumentar o gasto público para combater o choque recessivo e já se observa uma redução expressiva do superávit primário. É verdade que parte desta piora se deve ao aumento de transferências a Estados e municípios, que deve se reduzir se a receita tributária cair. Mas é verdade também que o crescimento das despesas da Previdência, de pessoal e dos encargos, nesta conjuntura de queda de receita, teriam sido suficientes para gerar um déficit primário, o primeiro observado em um mês de novembro em muitos anos.

Se todos os países estão reagindo assim, como pode alguém propor que o governo seja moderado? A resposta é novamente que a principal fonte de estresse da economia está na restrição externa. A taxa relativamente baixa de desemprego era resultado do crescimento do produto acima do seu potencial por uns trimestres consecutivos, o que se refletiu em um déficit em conta corrente de 2% do PIB, difícil de ser financiado hoje.

Para se formular medidas para combater a crise, em primeiro lugar é necessário reconhecer que falta financiamento e que ele vai continuar escasso por um período considerável de tempo, de forma que dificilmente se conseguirá rolar empréstimos externos e muito menos financiar pagamentos de juros e importações. Se isto é verdade, o país terá que exportar mais e importar menos bens e serviços. Quando analistas afirmam que o saldo comercial irá se reduzir, não estão reconhecendo o problema fundamental trazido pela falta de financiamento. O saldo comercial terá que ser maior porque o mundo mudou, porque ninguém financiará as nossas importações e deveremos portanto gerar a maior quantidade de moeda estrangeira com o resultado das exportações. Os tempos em que um bom projeto sempre encontrava um investidor com apetite para realizá-lo mudaram, o investimento direto pouco irá nos ajudar. E o mecanismo para gerar este superávit é a taxa de câmbio.

Esta nova conjuntura tem conseqüências não triviais para a política fiscal. Uma expansão fiscal hoje tem um enorme poder de desequilibrar a economia. Entre 2002 e 2008, o governo manteve o déficit público ao redor de 2% do PIB. Esta política, num regime de metas de inflação, impediu quedas da taxa de juros e foi responsável por parte da valorização cambial, que somente começou a se reverter em setembro último. O déficit público provocou esta valorização porque os altos juros levaram o setor privado a se endividar no exterior, financiando assim o déficit em conta corrente. O governo pode ter até reduzido sua dívida externa. Porém, o endividamento do setor privado aumentou substancialmente. Este resultado só foi possível porque existia financiamento farto para o setor privado. O crescimento do gasto era acomodado por um aumento da importação de bens e serviços financiados no mercado internacional através de investimento direto, investimento em carteira e endividamento. Esta era acabou. It´s all over now, baby blue. Como o setor privado não consegue se endividar externamente, se o governo se endividar internamente o resultado não será mais uma apreciação da taxa de câmbio, mas sim sua desvalorização, para impedir o aumento de importação que não tem mais como ser financiada.

Nestas circunstâncias, não adianta cobrar uma atuação mais audaciosa do Banco Central com as reservas internacionais, pois isto seria remar contra a maré e o único resultado seria o esgotamento destas reservas. Uma atuação audaciosa do BC costuma ter efeito quando se trata de um desvio temporário dos fundamentos. Por exemplo, como frente a uma sobre-reação dos investidores ante um resultado desconhecido, ou de uma reação em manada sem fundamento. Não é este o caso agora. As coisas mudaram. Gastar as reservas internacionais é como gastar toda a água potável após um naufrágio, em lugar de consumi-la moderadamente para aumentar as chances de chegar a um porto seguro. Consumir todas as reservas simplesmente para negar que se tem um modelo fiscal equivocado, certamente diminui as chances de a economia sobreviver a esta crise sem recair nos desequilíbrios econômicos que vivemos após as crises dos choques do petróleo.

Em 2008, 20% do PIB era consumido pelo governo, 61% pelo consumo privado, 19% pelos investimentos. O peso da demanda externa foi aproximadamente zero, apesar de o comércio exterior representar 27% do PIB. O déficit de 2% na conta corrente se deveu ao pagamento de juros e remessa de lucros e dividendos, e não a déficits na compra de bens e serviços. Mas mais importante ainda é a contribuição de cada um destes fatores ao crescimento do produto. A taxa de 6,3% observada em 2008 se decompõe em 8,5% de crescimento da demanda interna com 2,2% negativos da demanda externa. Isto permitiu que o investimento e o consumo crescessem acima do PIB. Se o gasto do governo passar a crescer 6,1%, ao invés dos atuais 5,1%, neste contexto de setor externo estagnado, isto terá que ser compensado por uma queda na taxa de crescimento dos investimentos dos 21% atuais para cerca de 8%.

Assim como em outros países, a política fiscal só deverá ser usada se as evidências de uma contração de gasto forem tais que se passe a vislumbrar uma redução excessiva do déficit nas contas externas e uma inflação muito abaixo da meta, como é o caso dos EUA. Caso contrário, a melhor resposta é a redução gradual das taxas de juros para devolver a confiança ao consumidor e aos empresários. Assim, a receita do governo se recuperará e não serão necessários os traumas futuros de cortes de gasto para equilibrar as contas públicas. Os Estados Unidos adicionalmente podem praticar uma política fiscal expansionista porque, ainda que pareça paradoxal, eles contam com financiamento do resto do mundo que lhes permite manter um déficit em conta corrente elevado. Como este paradoxo não durará para sempre, o Brasil tem que estar preparado para a retomada da economia internacional com uma situação fiscal invejável que possa atrair uma fatia maior de recursos de investimento já com juros muito mais baixos. Os juros não eram muito altos antes da crise? Os gastos de governo já não eram suficientes antes da crise? A oportunidade para obter uma melhor combinação de políticas é agora: os juros devem ser reduzidos e os gastos, mantidos ou moderados.