Título: A globalização e a muralha chinesa
Autor: Barbosa , Alexandre de Freitas
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2009, Opinião, p. A10

Se a sorte da economia mundial vai depender, em grande medida, das decisões tomadas pelo governo norte-americano sob Obama, não podemos esquecer que o fator China jogará um papel decisivo.

Recentemente, realizou-se no Rio de Janeiro um simpósio internacional, organizado pelo Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, que trouxe algumas contribuições para a compreensão da experiência chinesa.

O professor Dic Lo, da University of London e da Renmin University of China, nos brindou com uma interpretação do desenvolvimento chinês que destoa daquela difundida por boa parte da mídia e da academia ocidentais. Pergunta-se ele: por que teria a China sido poupada das três catástrofes que abalaram o mundo não desenvolvido depois dos anos 80? Seriam elas: a crise da dívida externa dos 80 que afetou várias partes do antigo Terceiro Mundo; a crise dos países do ex-bloco soviético desde o final dos anos 80; e a crise asiática do final dos anos 90.

Como entender que a China, durante este longo período de 30 anos, tenha logrado um crescimento da sua renda per capita de 9% ao ano? O caso chinês, ao menos do ponto de vista da corrente liberal, aparece como paradoxal e anômalo, ao desrespeitar de forma flagrante o Consenso de Washington.

De acordo com o mainstream, o segredo chinês poderia ser decifrado a partir de três enfoques. Há quem diga que não há segredo algum, pois a China estaria às vésperas de uma tão prognosticada crise do seu setor financeiro, carcomido por bancos estatais inundados de créditos podres. Ironicamente, a crise financeira foi parida no centro do capitalismo desregulado, podendo tal hipótese ser descartada.

O segundo enfoque é um tanto singelo. O diferencial do modelo chinês não estaria no gradualismo e no pragmatismo da sua política econômica, decorrendo antes do fato de que o país contava ao final dos anos 70 com uma baixa renda per capita e um reduzido nível de industrialização, dispondo ademais de um vasto reservatório de mão-de-obra. Em poucas palavras, a China cresce porque é a China.

Este argumento, além de ingênuo, demonstra-se falso. Dic Lo mostra como, já em 1980, o setor industrial responde por 50% do PIB chinês. Mais importante ainda, nos últimos 10 anos aquele país experimentou um processo de transformação estrutural da economia, impulsionado pelos setores mais intensivos em capital, o que se constata pelo dinamismo da exportação de produtos industriais de alto valor agregado e densidade tecnológica.

A terceira saída dos neoclássicos para submeter a economia chinesa aos ditames dos seus modelos abstratos é apelando para os fatores exógenos. Ou seja, o diferencial da China não é mais a China. O país teria se aberto às forças inelutáveis do mercado, atraindo multinacionais e concentrando seus esforços nas exportações, por meio de um aproveitamento das vantagens comparativas.

Mais uma vez, a visão convencional revela a sua pobreza analítica. De um lado, porque teríamos que explicar porque este modelo só deu certo na China e em alguns países do Sudeste Asiático, justamente aqueles que não se curvaram às políticas recomendadas pela tríade Banco Mundial-FMI-OMC.

Por outro lado, não se atenta para o fato de que em metade dos anos do período 1978-1993 a China apresentou déficit comercial. E mesmo no pós-1994, como prova o professor Lo, a participação das exportações líquidas jamais superou a casa dos 4% do PIB! Por outro lado, os investimentos externos responderam no período pós-1992 por apenas 14% da formação bruta de capital fixo.

Parece, portanto, mais plausível a hipótese de que o setor externo é parte integrante de uma dinâmica endógena, que depende de outras forças econômicas - gasto público, empresas estatais reformadas e empresas industriais nas áreas rurais - acionadas por meio de um conjunto de inovações institucionais.

Recente livro do professor inglês Mark Leonard, diretor-executivo do European Council for Foreign Relations, desenvolve a tese de que, ao contrário da versão norte-americana da globalização, concebida a partir de um mundo supostamente plano, os chineses oferecem uma alternativa, a do "mundo amuralhado". Estaria em curso uma reformulação da "mentalidade da Grande Muralha". Em vez de isolar a China do resto do mundo, trata-se agora de utilizar a globalização como ferramenta para a promoção da idéia chinesa de soberania.

Depois de entrevistar cerca de 200 lideranças políticas e intelectuais do país, o quadro pintado pelo professor Leonard reflete uma realidade bastante diferente do mundo monolítico que povoa a mente dos analistas ocidentais. Existe um intenso debate no seio do próprio Partido Comunista, que se espraia por centros de pesquisa e universidades do país, dando margem a uma profusão de novos experimentos políticos e econômicos, os quais se orientariam a partir de duas grandes linhas ideológicas. Emergiriam assim uma "nova direita", mais pró-mercado, e uma "nova esquerda", preocupada com a redução da desigualdade e o desenvolvimento de novas formas de participação política.

Tal efervescência política e cultural estaria por transformar a China - para além de uma potência em termos econômicos, geopolíticos e militares - num grande celeiro de idéias. Mais que uma potência regional como o Brasil e a Índia, a China, por meio de seu soft power, se afirmaria como uma espécie de "Estados Unidos em miniatura".

Para muitos países em desenvolvimento, o modelo chinês parece surgir como alternativa, ao combinar reformas econômicas graduais, intervenção do Estado e crescentes prioridades sociais, às quais têm ganhado corpo a partir da retórica do governo atual em torno do conceito de "sociedade harmoniosa". Já no caso da Europa e dos Estados Unidos, desprezar a nova visão de mundo chinesa comprometeria a sua própria capacidade de reposicionamento na nova ordem crescentemente multilateral.

Voltando ao professor Dic Lo, é importante destacar que o período pós-abertura da economia chinesa combinou diversas opções de políticas econômicas e estratégias de desenvolvimento. Depois do auge das privatizações de 1995-1997, e pressionada pelos efeitos deflacionários da crise asiática, a política econômica chinesa destacou-se pelas seguintes diretrizes: expansão do investimento público e dos gastos sociais, revitalização do setor estatal e maior cautela na liberalização da conta capital.

Num contexto de débil consumo das famílias (em virtude da insegurança social e da expansão da desigualdade) e de crescentes superávits comerciais - que trazem o risco de respostas protecionistas de todos os lados - a China vem debatendo e acionando um conjunto de políticas públicas para elevar a importância relativa do mercado interno como fonte de crescimento econômico.

É muito provável que a segunda economia do planeta (em Paridade de Poder de Compra) saia chamuscada pela crise financeira atual. Mas não parece ilusório imaginar que o sucesso da sua nova estratégia macroeconômica condicionará a rapidez da recuperação e o ritmo de expansão da economia mundial no médio prazo, assim como o tipo de capitalismo que predominará no futuro próximo.

Alexandre de Freitas Barbosa é doutor em Economia Aplicada pela Unicamp e pesquisador do Cebrap.