Título: Fundo soberano para quê?
Autor: Mendes , Marcos
Fonte: Valor Econômico, 17/12/2008, Opinião, p. A14

Um fundo soberano é criado por um país quando este tem superávit nas contas públicas. Nada mais é do que o acúmulo de uma poupança. O setor público brasileiro não tem superávit nominal e, por definição, não tem recursos a acumular em um fundo soberano. Tampouco há perspectiva de obter superávits nominais nos próximos cinco anos: a despesa é rígida e crescente, e a receita tende a murchar com a crise econômica.

Por que, então, tanta insistência em se aprovar tal fundo? O que se pode imaginar é que se pretende usar esse instrumento para atingir outros objetivos.

Para entender que objetivos seriam esses, cabe fazer três perguntas: I) como o dinheiro entra no fundo? II) como o dinheiro sai do fundo para realizar despesas? III) como o dinheiro é aplicado enquanto está no fundo?

A primeira possibilidade é que o fundo seja alimentado com recursos fiscais (art. 4º, inciso I do Projeto de Lei da Câmara nº 164, de 2008, em tramitação no Senado Federal), que poderão ser sacados do fundo e aplicados em despesas do orçamento quando o seu Comitê Gestor considerar necessário "mitigar os efeitos dos ciclos econômicos" (art. 5º, caput e § 1º). Os recursos sacados do fundo para essas despesas não poderão ser aplicados em "despesas de caráter continuado", nem poderão ser vinculados a qualquer despesa específica (art. 5º, § 2º).

Essa parece ser uma tentativa de direcionar recursos fiscais para investimentos, impedindo que parte dos recursos orçamentários seja destinada a despesas correntes "de caráter continuado". Além disso, há espaço para, na regulamentação do fundo, estabelecer que o Comitê Gestor (presidente do Banco Central e ministros da Fazenda e do Planejamento) defina, especificamente, qual a despesa que deverá ser financiada com aqueles recursos que estão sendo sacados (investimentos do PAC, por exemplo), (art. 6º). Nesse caso, seria uma tentativa de restringir a prerrogativa do Legislativo de alterar a destinação dos recursos, reduzindo o poder do Congresso em matéria orçamentária. Mais especificamente: reservar recursos para investimentos prioritários do Executivo, evitando que os recursos fiscais sejam alocados em emendas parlamentares.

Qual a eficácia desse mecanismo? Pouca ou nenhuma. Para conter as despesas correntes de caráter continuado, o Executivo não precisa de nenhum fundo. Basta moderar os reajustes do funcionalismo, conter as contratações e ser austero no custeio. Não é o Legislativo, e sim o Executivo que tem expandido as despesas correntes (as emendas parlamentares são concentradas em investimentos).

A tentativa de restringir os recursos disponíveis para emendas parlamentares seria inútil, visto que o Congresso poderia cancelar outras rubricas de investimento ou gasto corrente para financiar suas emendas, ou simplesmente ampliar a estimativa de receita para acomodar seus gastos.

A segunda possibilidade de uso do fundo seria a de reservar recursos para ano eleitoral. A regra anunciada pelo governo (não explicitada no projeto de lei) é de que os recursos aportados ao fundo impactarão o resultado primário no momento da transferência. Tendo em vista que 2008 será um ano gordo em termos de receita, com a meta de resultado primário sendo facilmente ultrapassada, interessaria ao governo jogar parte desses superávit excedente de 2008 no fundo, para poder gastar o dinheiro na véspera da eleição de 2010, sem que isso comprometa o resultado fiscal daquele ano. Daí a pressa em aprovar o fundo ainda neste ano. Até porque 2009 promete ser um ano de receitas em queda e resultado primário menor.

O que pensar disso? A princípio, qualquer governo tem o direito de fazer a alocação intertemporal de recursos que desejar. Não é crime poupar ao longo do mandato para gastar ao final. Deve-se registrar, entretanto, que o fundo se torna, nesse caso, um mecanismo de política fiscal expansionista: em vez de se usar o superávit fiscal para abater dívida pública, como habitualmente se faz, guarda-se o dinheiro em uma poupança à parte, o Fundo Soberano, para gastar na véspera da eleição. Há, além disso, um custo financeiro: em vez de quitar a dívida do Tesouro, cujo custo pode ser aproximado pela taxa Selic, ora fixada em 13,75% ao ano, deixa-se o dinheiro aplicado em investimentos que devem render a taxa Libor (ora de 2,54% para operações de 6 meses) (art. 2º, § 3º). Trata-se, assim, de uma estratégia de acumulação equivalente a de um indivíduo que se endivida no cheque especial para aplicar os recursos na caderneta de poupança.

A terceira possibilidade de uso do fundo seria a de gerar funding para empréstimos do BNDES. O Fundo Soberano pode aplicar suas disponibilidades, exceto as decorrentes da emissão de títulos da dívida pública (art. 4º), no Fundo Fiscal de Investimentos e Estabilização (FFIE) (art. 7º), a ser gerido por instituição financeira federal (provavelmente o BNDES). Os recursos depositados no FFIE seriam usados pelo banco para conceder empréstimos. Quando a União precisasse dos recursos para fazer gastos via orçamento, ela sacaria suas disponibilidades do FFIE, assim como um correntista de banco saca do fundo de investimento para cobrir os cheques que emitiu.

Trata-se, pois, de usar recursos fiscais para fazer política industrial, por meio de empréstimos subsidiados a setores eleitos pelo governo como prioritários na sua estratégia de desenvolvimento. Novamente, não há nada de ilegal nisso, mas não é necessário nenhum Fundo Soberano para direcionar recursos fiscais para o BNDES (este ano tivemos, por exemplo, a Medida Provisória 439, que autorizou a União a conceder crédito àquela instituição de até a R$ 15 bilhões). A criação do fundo apenas torna o processo menos transparente e escamoteia o fato de que o governo está fazendo uma opção de colocar dinheiro do contribuinte no financiamento de empresas, em vez de dar a ele aplicação alternativa, como ampliar o Bolsa Família ou reduzir a tributação. E há, também, mais uma vez, o custo financeiro: a União tem um custo de financiamento em torno de 13,75% e o BNDES remunerará os recursos a ele emprestados à taxa Libor.

Destaque-se, além do mais, que a aplicação de recursos no FFIE em ativos no Brasil é contraditória com o objetivo de mitigar os efeitos dos ciclos econômicos. Isso porque, nos momentos de crescimento econômico (e entrada de recursos no Fundo Soberano), haverá aporte de recursos ao FFIE, que os emprestará a empresas no Brasil: o dinheiro que o Fundo Soberano retirar da economia será reinjetado pelo FFIE, via aumento de crédito doméstico. Durante as recessões, o saque de recursos do fundo pelo Tesouro, para fazer despesa pública anticíclica, implicará redução nos financiamentos concedidos pelo FFIE: o estímulo da política fiscal à economia seria contrabalançado pela contração do crédito.

Em suma, o Fundo Soberano parece ser um instrumento para: I) tentar ampliar o espaço dos investimentos no orçamento (com pouca chance de sucesso); II) armazenar recursos para gastos pré-eleitorais (com custo financeiro para o Tesouro) e III) carrear recursos para política industrial via BNDES (com custo financeiro, prejuízo à transparência fiscal e baixo efeito anticíclico).

Nesses dias em que vemos engenhosos mecanismos financeiros virarem um monte de pó e prejuízo, seria prudente ser mais cuidadoso na análise da oportunidade e dos benefícios e custos do Fundo Soberano.