Título: Risco de racionamento em 2008 era maior que em 2001, diz Kelman
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 09/01/2009, Especial, p. A8

Pelo vigor com que defendeu suas convicções, não serão poucos os suspiros de alívio nesta terça-feira, quando o engenheiro e hidrólogo Jerson Kelman encerrar seu mandato de quatro anos à frente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Foi sob o comando de Kelman que a agência aplicou uma multa recorde de R$ 12 milhões à Eletrobrás, a Petrobras foi obrigada a reconhecer a insuficiência de gás para todas as usinas termelétricas e as distribuidoras de energia tiveram que encarar novas regras de revisão tarifária que reduziram em até 18% as contas de luz. Ruy Baron/Valor Jerson Kelman: "Alguns integrantes do MP têm um comportamento ideológico e usam todos os artifícios para constranger"

Em uma atitude rara para os chefes das agências, Kelman rejeitou a "postura do avestruz" - expressão usada por ele ao comprar briga com o ex-ministro Silas Rondeau, que lhe recomendou ater-se estritamente às responsabilidades da Aneel. Em janeiro do ano passado, quando as chuvas demoraram a chegar, quebrou o silêncio do governo e admitiu o risco de um novo racionamento. "Vamos aos fatos: em janeiro, o risco já era de 20%. Em fevereiro, chegou a 32%. Era minha obrigação ter avisado isso ao governo", afirmou Kelman, ao criticar abertamente a postura do Palácio do Planalto. "O fato é que a melhor maneira de ter credibilidade é falar a verdade. A verdade, e nisso eu coloco todos os meus diplomas, é que o Brasil corria um risco de racionamento muito maior do que o tolerável."

Entre os diplomas que ele colocou em jogo estão o de mestrado em engenharia civil, pela UFRJ, e o de doutor em hidrologia e recursos hídricos, pela Universidade de Colorado, nos Estados Unidos. Com a saída da Aneel, prepara-se para uma temporada no Bellagio Center, no norte da Itália, a convite da Fundação Rockefeller, onde se juntará a escritores e acadêmicos do mundo inteiro em busca de um refúgio intelectual. Depois, deve lecionar como professor-visitante na Universidade de Harvard. E partir para trabalhos, ainda indefinidos, na iniciativa privada.

Kelman deve ser substituído pelo ex-ministro Nelson Hubner, cuja indicação já foi aprovada pela Comissão de Infra-Estrutura e agora espera análise do plenário do Senado. Foi o ex-ministro quem desmentiu, no dia seguinte, os alertas sobre o risco de um novo racionamento em 2008.

Kelman acha que o embate pode ter-lhe custado a não-recondução. Nesta entrevista ao Valor, a última concedida à frente da Aneel, ele fala abertamente sobre esses episódios. Dá suas sugestões para evitar a repetição de polêmicas como a da usina hidrelétrica de Jirau. E reage aos processos que responde por iniciativa de procuradores do Ministério Público. "Não quero parecer Jerônimo, o herói do sertão, mas é um total abuso de autoridade." A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Tendo passado pela ANA e pela Aneel, em dois governos diferentes, como o sr. avalia a independência das agências reguladoras nos últimos anos?

Jerson Kelman: A tarefa da regulação no Brasil, e não apenas na energia elétrica, é dificultada pela má aceitação que parte da sociedade ainda tem do processo de privatização. Basta lembrar como foi a campanha do (Geraldo) Alckmin em 2006. Ao contrário de outros países, nós temos uma cultura de aversão ao lucro alheio. Mas é preciso dizer que o governo (Lula) não tentou interferir em temas que são obviamente de competência da Aneel. No que é tipicamente regulatório, como cálculos tarifários, o governo aguentou o rojão de impopularidade por decisões da Aneel. Desrespeitar contratos ou ser engenheiro de obra feita teria transformado o país em uma república de bananas.

Valor: Houve exceções?

Kelman: Tivemos choques na zona cinzenta do que não é estritamente regulatório. Vou dar um exemplo de ação do governo em um tema fronteiriço, mas que ocorreu de forma totalmente desnecessária. Nós entendíamos que, nos leilões de geração, havia uma grande incerteza de custos para o empreendedor, entre a licença ambiental prévia e a licença de instalação. Descobrem-se mil bromélias e outras tantas surpresas que aumentam o custo do empreendimento, depois da licitação. Alguém precisa arcar com esse custo adicional. Nós entendíamos que isso deveria ficar com o consumidor. Se fica com o empreendedor, ele faz uma previsão pessimista do acréscimo de custos e a embute na tarifa de todos os leilões seguintes. O governo entendeu de forma diferente e nos orientou a revogar a decisão um dia depois.

Valor: Não houve outros modos de interferir na Aneel, como o silêncio que lhe foi imposto há um ano, quando o sr. alertou sobre os riscos de um racionamento?

Kelman: À altura, o risco de um racionamento era maior do que havia em 2001. Eu disse ao presidente Lula, em uma conversa bastante tensa, que esses temas são delicados. É como dizer que um banco vai falir: se você anuncia, provoca uma corrida aos caixas. Eu li para ele um trecho do relatório Kelman (de 2001) em que há uma ata do que foi dito ao presidente Fernando Henrique Cardoso às vésperas do racionamento. Era algo incompreensível para quem não era do ramo. Em 1999, os gestores do setor elétrico ficaram com medo de um racionamento no ano seguinte. Não informaram à sociedade, deram um jeito e empurraram com a barriga. Em 2000, a situação estava mais grave e escapamos. Tentaram fazer a mesma coisa em 2001 e aí não houve salvação. A perspectiva em 2008 era pior do que a de 2001.

Valor: Então havia risco real de racionamento?

Kelman: Vamos aos fatos: em janeiro, o risco já era de 20%. Em fevereiro, chegou a 32%. Era minha obrigação ter avisado isso ao governo. Eu lamentei a forma como isso saiu na imprensa, mas não tenho dúvida nenhuma de que deveria insistir na necessidade de medidas preventivas. Possibilidades desagradáveis, quando não são discutidas, viram fatos desagradáveis. Mas infelizmente aquilo tudo foi confundido, parecia que eu estava torcendo por um racionamento. O governo não quis passar por um constrangimento.

Valor: O sr. atribui a sua não-recondução à Aneel a esse desgaste com o Palácio do Planalto?

Kelman: Talvez sim. Acho que esse episódio pode ter sido relevante. Ninguém me falou, mas é uma suposição. O Nelson Hubner também tinha serviços relevantes prestados ao governo.

Valor: Que medidas preventivas o sr. sugeria?

Kelman: Por exemplo, o direcionamento do gás natural para as usinas termelétricas. O abastecimento para os veículos poderia ter sido interrompido sem que isso tivesse prejudicado os taxistas, por meio de uma cota subsidiada de gasolina para compensar a diferença de preço. Isso não foi nem cogitado, por causa do impacto político. Possivelmente teria saído mais barato do que acionar as térmicas a óleo. Talvez não, era algo a ser estudado, mas o fato é que essa conta não foi feita.

Valor: Então acabamos pagando uma conta que também foi cara por não termos lidado abertamente com os riscos?

Kelman: Não deixaram os consumidores perceber que alguma coisa tinha que ser feita. De que maneira? Ligando as térmicas. Quanto custou isso? R$ 1,7 bilhão. É claro que o consumidor não viu, mas vai sentir no bolso. Se tivéssemos combinado mais medidas, talvez tivesse saído mais barato. O fato é de que a melhor maneira de ter credibilidade é falar a verdade. A verdade nesse caso, e nisso eu coloco todos os meus diplomas, é que o Brasil corria um risco de racionamento em 2008 muito maior do que o tolerável.

Valor: O sr. disse que o risco foi detectado em janeiro e fevereiro e choveu em março. Por que as térmicas ficaram então ligadas durante todo o ano?

Kelman: Aquela situação do início de janeiro de 2008, a despeito das mensagens tranqüilizadoras do governo, criaram aflição dentro do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) e as decisões passaram a ser tomadas "ad hoc", que vão muito na percepção do momento, na subjetividade. Mas a razão do risco de racionamento não estava só ligada à hidrologia. Em 2006 e 2007, simplesmente 6,5 mil MW tinham desaparecido do sistema. Foi a Argentina, o gás de Cuiabá e a nossa Petrobras com falta de gás natural. É como se o Bin Laden tivesse passado por aqui.

Valor: Os agentes do setor reclamam da falta de transparência das decisões do CMSE. O sr. concorda?

Kelman: Sim, o CMSE é pouco transparente. Deveria publicar as atas. Não sou contra decisões "ad hoc", as pessoas não são escravas de regras. A questão é que isso deve ser uma exceção. Minha atuação no CMSE foi de lutar pela sistematização do acionamento das térmicas. O consumidor não vai entender, se houver um racionamento, porque não se ligaram as térmicas antes.

Valor: Qual é a maior lição que se tira do leilão de Jirau, em que o vencedor mudou o lugar da usina em mais de nove quilômetros, para as próximas licitações?

Kelman: Nos próximos editais, ficará mais clara a liberdade ao empreendedor de propor alterações no projeto, desde que ele não minimize o uso dos recursos naturais (a energia assegurada), não prejudique os aproveitamentos hidrelétricos vizinhos nem agrave os impactos socioambientais.

Valor: Favorecendo a competição?

Kelman: Justamente. Temos de incentivar a concorrência, a criatividade dos investidores na busca por soluções mais inteligentes do que aquela licitada. Antes do leilão da usina de Santo Antônio, recebi da Odebrecht uma correspondência em que ela sugeria que estávamos loucos. Havíamos fixado a tarifa-teto em R$ 122 por megawatt-hora (MWh), mas a Odebrecht insistia em que o custo da obra podia chegar a R$ 11 bilhões, o que dava uma tarifa de R$ 141/MWh. Eu até pensei, em certo momento, que o leilão ia ficar vazio. Mas não voltamos atrás e o lance vencedor foi de R$ 78/MWh.

Valor: A Odebrecht exagerou nas tentativas de insistir no projeto original?

Kelman: Eu compreendo a frustração do grupo Odebrecht/Furnas. Foram pioneiros e reconheço o benefício que fizeram ao país estudando o Rio Madeira, obviamente motivados pela expectativa de ganhar a concessão.

Valor: O sr. foi ameaçado duas vezes pelo Ministério Público com acusações de improbidade administrativa por ter defendido uma nova forma de licenciamento ambiental e ter entrado na discussão sobre os impactos ambientais de Jirau. Como avalia esse tipo de ação do MP?

Kelman: Não quero parecer Jerônimo, o herói do sertão, mas é um total abuso de autoridade. Alguns integrantes do MP têm um comportamento ideológico, querem impor suas convicções pessoais e usam todos os artifícios legais para provocar constrangimentos. Eu estou sendo processado porque enviei ao presidente do Ibama um ofício em que o aconselho a considerar certos aspectos em um processo decisório. Não tenho o menor receio de ser condenado. Mas não é a condenação o que importa. O administrador público fica com uma espada na cabeça, com um aborrecimento durante anos. Ele tem no Brasil todo o incentivo para não tomar decisão nenhuma, para postergar e, com isso, não ser incomodado mais adiante.

Valor: O sr. pertence à comissão do Ministério de Minas e Energia que estuda a prorrogação das concessões que vencem a partir de 2015. Quais recomendações deixaria a esse grupo?

Kelman: Esse é um tema bastante complicado. Tem uma dimensão legal e outra econômica. Sem levar em conta os aspectos jurídicos, que não são a minha especialidade, a natureza é muito diferente em cada uma das áreas: geração, distribuição e transmissão. No caso da geração, renovar pura e simplesmente as concessões não é algo razoável. Sugiro que se faça uma licitação inspirada na Lei do Inquilinato: quando o proprietário de um imóvel quer vendê-lo, tem direito de preferência o atual inquilino. A lógica é diminuir os custos de transação. Os dois lados podem sair ganhando e evitar as despesas com a mudança. Isso pode evitar uma grande tragédia: que grandes concessionárias de geração se tornem empresas ocas. Com prédios, engenheiros, secretárias e datilógrafos - mas sem usinas.

Valor: E como o consumidor pode ser beneficiado?

Kelman: Mediante um preço menor da energia ou o pagamento de uma taxa pela concessionária. Nunca vão faltar idéias de onde o dinheiro pode ser aplicado. Para simplificar, pode-se aliviar a conta da rede básica (de transmissão). A idéia de que eu gosto é buscar a uniformização dos preços de energia elétrica aos consumidores residenciais de todo o país. A principal deformação do setor elétrico brasileiro é a diferença tarifária. Lugares em que se tem muitos quilômetros de fio para atender poucos megawatts-hora de consumo, como Bahia e Maranhão, ou com populações muito espalhadas, como Pará e Mato Grosso, têm tarifas mais altas. Veja como essa iniqüidade tarifária é perversa: o Distrito Federal, que tem a renda per capita mais alta do país, possui ao mesmo tempo as tarifas mais baixas entre as 64 concessionárias do país.