Título: Empresas pagam 'taxa' indígena na Bolívia
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Fonte: Valor Econômico, 26/01/2009, Internacional, p. A9

O maior fabricante de cerveja da Bolívia, a Cervejaria Boliviana Nacional, paga anualmente uma "tarifa" que não vai para o caixa do governo federal nem entra nas contas de nenhum governo regional. Os recursos vão diretamente para os líderes indígenas da comunidade Huari, no Departamento de Oruro.

A empresa pertence à InBev e tem oito marcas de cerveja na Bolívia. Uma delas - a Huari - é produzida com água dos rios da região de mesmo nome onde habita a comunidade indígena. Por pressão dos índios, a cervejaria desembolsa uma contribuição anual em dinheiro. Este ano são 400 mil bolivianos para os "caciques" (R$ 132,7 mil), valor reajustado a cada quatro anos, disse na tarde da sexta-feira ao Valor o gerente nacional de Recursos Humanos da empresa, Néstor Molina. "É como uma tarifa que pagamos para os indígenas pelo uso da água", disse ele por telefone. "Suponho que teríamos problemas se não pagássemos."

Mesmo antes do resultado do referendo de ontem sobre o projeto da nova Constituição - projeto que amplia direitos das populações tradicionais da Bolívia e dá a elas, por exemplo, o direito de cobrança de impostos em áreas sob sua jurisdição -, povos indígenas já cobram, na prática, uma espécie de imposto paralelo de empresas que exploram recursos nos territórios historicamente ocupados por eles.

"As empresas têm de incluir esse custo em seus orçamentos", afirma José Padilla, assessor para as áreas de hidrocarbonetos e mineração do governo do Departamento de Santa Cruz, coração da oposição ao governo de Evo Morales. Aquelas que não atendem às demandas das comunidades já enfrentaram, de acordo com Padilla, problemas como o fechamento pelos indígenas dos acessos a seus projetos.

"Quando uma empresa se interessa por algum projeto na Bolívia que afete um território de comunidades indígenas, a primeira coisa que precisa fazer é entrar em acordo com os indígenas", diz ele. Em 2007, os Ministérios de Hidrocarbonetos e do Ministério do Meio Ambiente assinaram um decreto que exige que as empresas consultem as comunidades indígenas sobre seus empreendimentos e discutam com elas se é o caso de pagamento de compensações - em dinheiro ou não - para aliviar os danos ambientais e culturais de cada projeto. O problema, queixa-se Yussef Akly, gerente da Câmara Boliviana de Hidrocarburos , entidade que reúne empresas que exploram gás no país, é que "atualmente não há um critério específico sobre quanto se deve pagar. É tudo na base da negociação com cada comunidade."

Padilla lembra que a empresa produtora de gás Chaco, controlada pela britânica BP - até sexta-feira, quando foi nacionalizada - chegou a pagar no ano passado US$ 800 mil para os indígenas que vivem próximos de um campo da empresa. Akly prevê que a francesa Total "terá de negociar com os indígenas no futuro próximo, quando der início às suas atividades". Hoje, continua Akly, se uma empresa qualquer não chega a um consenso com a comunidade, a obra pára.

"Tudo isso vai ganhar muito mais relevância com a nova Constituição. E não só no setor de hidrocarbonetos", prevê Akly. A expectativa é que cresça a pressão de comunidades indígenas sobre empresas florestais e de mineração, por exemplo.

No caso da cervejaria da InBev, as pressões por mais compensações aumentaram nas semanas que antecederam o referendo. Néstor Molina diz não acreditar que a movimentação tenha a ver com a expectativa da nova Constituição. "Há uma pressão da comunidade. É natural, eles sempre querem melhorar o que recebem." Além dos recursos em dinheiro, a cervejaria, segundo Molina, ajuda a comunidade Huari a organizar turismo interno, a promover feiras de artesanato e também a tocar projetos educacionais. A empresa, diz ele, encara a ajuda como parte de sua política de responsabilidade social.

Se a nova Constituição for aprovada - pesquisas falavam em vitória do "sim" com 55% dos votos - a relação entre empresas e comunidades originárias terá novos contornos. O artigo 304 diz que as comunidades indígenas camponesas autônomas poderão "criar e administrar taxas, patentes e contribuições especiais" em suas áreas e "administrar os impostos de sua competência no âmbito de sua jurisdição". No capítulo sobre "direitos das nações e povos indígenas originários camponeses", a Carta diz que eles terão de ser consultados a respeito da exploração de recursos não renováveis no território que habitam. Estabelece ainda que terão direito à "participação dos benefícios da exploração" desses recursos. O texto, assim como o decreto ministerial atual, não detalha os critérios de cálculo para as compensações.

Críticos como Padilla encaram os termos como desfavoráveis ao investimento privado. Mas o governo Morales repete que num país de maioria indígena empobrecida, as empresas precisam assumir responsabilidades e minimizar impactos ambientais e culturais causados por projetos.

No início da década, a Bolívia viveu uma experiência dramática quando um derramamento de óleo no Rio Desaguadero praticamente extinguiu os peixes do lago Poopo. Ao redor do lago vivem comunidades indígenas tradicionais que tinham sua alimentação baseada na pesca e que, por um bom período de tempo, se viram às margens de um mar de óleo sem vida.