Título: América Latina e a crise: resposta anticíclica e progressiva
Autor: Giugale , Marcelo M.
Fonte: Valor Econômico, 26/01/2009, Opinião, p. A10
Os governos latino-americanos precisam amortizar o impacto da crise financeira global. Não dispõem de muitas ferramentas para fazê-lo. Mas têm uma particularmente poderosa, pois incentiva tanto o crescimento econômico como a eqüidade social: a transformação dos subsídios para todos em subsídios para todos os pobres.
Tradicionalmente, os Estados latino-americanos pagam por parte ou pela totalidade de serviços tão variados como eletricidade, gás, água, gasolina, ligações telefônicas ou educação universitária. E pagam sem se importar com quem recebe esses serviços ou a capacidade de pagamento de quem os usa. Com o tempo, esses subsídios "universais" tornaram-se um mecanismo para ampliar a classe média - o que os fez politicamente intocáveis. Mas ninguém sabia realmente quanto de cada subsídio chegava a cada classe. Nem sequer se sabia com que grau de eficiência esses serviços eram utilizados: como eram um presente do Estado, havia pouco incentivo para fechar a torneira, apagar a luz ou formar-se no tempo certo.
Felizmente, durante a última década melhorou a qualidade de nossas estatísticas, permitindo-nos calcular quanto de cada subsídio chega a quem. Agora sabemos, por exemplo, que alguns países latino-americanos gastam mais no subsídio da gasolina para os seus cidadãos ricos (ênfase em "ricos") do que na totalidade de seus programas de assistência social. Alguns investem mais em dar educação universitária gratuita a estudantes abastados do que investem em saúde pública. Outros aplicam mais recursos para aquecer residências em zonas opulentas do que para criar empregos em bairros pobres. E outros subvencionam passagens de avião, um meio de transporte que não é precisamente de uso regular dos indigentes. A lista de comparações é longa.
Por trás dessa lista há, sem dúvida, uma aberração distributiva. Como os recursos fiscais nunca são suficientes para cobrir todas as necessidades sociais, em alguma parte da economia existe uma criança pobre que não tem o que comer, não recebe vacinas ou educação, para que seja mais barato para um adulto rico dirigir seu carro, tomar banho de piscina ou sair de férias. Na realidade, os subsídios "universais" não são subsídios "cruzados", dos pobres para os ricos.
De quanto dinheiro estamos falando? Muito. A América Latina gasta anualmente de 5 a 10% de seu PIB em subsídios. Não é exagerado pensar que um terço do valor desses subsídios vai para a quinta parte da população com nível de renda mais alto, ou seja, os ricos. Isso seria suficiente para triplicar (ou mais) os programas de transferência direta de renda que a região implementou com êxito na última década.
A crise é uma oportunidade.
Em 2009, a América Latina deixará para trás um período de auge para entrar em um de ajuste. Haverá menos crescimento, mais desemprego e mais risco de aumento da pobreza. E haverá menos recursos públicos para fazer frente às maiores necessidades sociais. É natural então que nossos governos procurem formas de amortizar o impacto da crise e de "estimular" suas economias.
Ao contrário do mundo desenvolvido, as opções de estímulo na América Latina são mais restritas. Os países que tinham déficits fiscais antes da crise dificilmente podem encontrar agora financiamento para gastar ainda mais. Mesmo os países com superávit ou fundos acumulados, salvo exceções, não dispõem necessariamente da capacidade institucional para aumentar a despesa de investimento de forma suficientemente rápida. Reduzir impostos teria um impacto limitado, dados os altos níveis de informalidade. E não parece aconselhável destruir anos de esforço antiinflacionário deixando que nossos bancos centrais imprimam dinheiro para financiar o tesouro.
Aqui é onde a crise global transforma-se em uma oportunidade para a América Latina. Focar os subsídios nos domicílios mais necessitados não é só questão de eqüidade, mas também de boa gestão econômica. A razão é que, carentes de crédito e patrimônio, os pobres têm necessidades insatisfeitas e consomem cada real que recebem. Os ricos, por outro lado, não reduzem significativamente seu consumo após um aumento no preço que pagam pelos serviços públicos. Trata-se de mudar o beneficiário da despesa pública, sem aumentar a despesa total nem a dívida.
Curiosamente, a tempestade financeira tornou a focalização mais viável do ponto de vista político. Quem se oporia hoje a cobrar dos ricos o custo da eletricidade ou da gasolina que consomem, se os recursos forem destinados a aliviar o sofrimento dos mais afetados pela recessão? De fato, alguns governos da região começaram nos últimos anos a desmontar seus subsídios universais. Com tecnologias de medição melhores e mais baratas, foi possível cobrar dos que podem pagar, ou cobrar mais dos que consomem mais. Se este não for o momento propício para expandir essas iniciativas, dificilmente encontraremos outro melhor.
Marcelo M. Giugale é Diretor de Política Econômica e Redução da Pobreza para a América Latina e o Caribe do Banco Mundial.