Título: Nova Constituição mantém clima de conflito na Bolívia
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 28/01/2009, Opinião, p. A8
O presidente Evo Morales alcançou uma crucial vitória ao conseguir aprovar a nova Constituição da Bolívia. A Carta teve uma gestação extremamente tumultuada, e sua sanção popular nas urnas deveria ser, mas não será, o capítulo final de um rearranjo político concertado. Ainda falta resolver, por meio de leis, a questão da autonomia das províncias, o estopim de todos os conflitos recentes, em que posições radicais continuam em confronto e mantém a secessão do território boliviano como uma ameaça latente. Em quatro das províncias mais ricas, venceu o não. Nacionalmente, a proporção gira em torno de 60% pela aprovação, contra 40% de rejeição.
Há de tudo nos 411 artigos da Constituição da Bolívia - a brasileira, extensa demais, tem 250. Ela é radical na extensão das garantias do Estado à saúde, educação e habitação, francamente estatizante no capítulo econômico e corporativista, na parte relativa aos poderes concedidos às 36 comunidades indígenas originárias. A Carta embala desde a justa obrigação da igualdade salarial entre homens e mulheres em "trabalhos de igual valor" até a utópica proibição de dispensa sem justa causa. Há avanços na defesa do dinheiro público, como o artigo que torna imprescritíveis delitos cometidos por servidores públicos contra o patrimônio do Estado. Os parlamentares só terão imunidade no exercício de sua função.
Ainda que seja mais fácil fazer uma Constituição ideal do que respeitá-la ou torná-la respeitada, as dificuldades principais com o novo marco legal são a concentração da propriedade nas mãos do Estado - a propriedade privada terá de cumprir uma função social, sob ameaça implícita de expropriação - e os direitos que as comunidades indígenas, a maioria do povo boliviano, passarão a desfrutar.
A Constituição estende virtualmente ao Estado a posse de todos os recursos naturais, que poderão ser explorados pelas empresas privadas com participação minoritária. As empresas, porém, não terão mais como apelar a um árbitro imparcial para julgar eventuais conflitos. O texto constitucional rege que a Bolívia não mais aceita arbitragem internacional. O governo já nacionalizou gás e petróleo, uma parte da mineração, das telecomunicações e caminha para fazer o mesmo com a energia elétrica.
A Constituição abre o caminho para intervenções fortes do Estado. É o caso quando, por exemplo, dita que todas as formas de organização econômica tem a "obrigação de contribuir para a redução das desigualdades e a erradicação da pobreza". Se o governo ou movimentos sociais julgarem que uma empresa paga "salários de fome", estará instalada a encrenca. Da mesma forma, dívidas e atos lesivos à nação são tidos como traição à pátria e considerados imprescritíveis. Entre eles está a "alienação dos recursos naturais de propriedade social do povo em favor de empresas, pessoas ou Estados estrangeiros".
A interpretação ampla desse artigo pode ser explosiva quando se trata da questão fundiária. Setores que apóiam o governo criticam a cessão ilegal de terras durante as ditaduras militares, o que ocorreu especialmente nas províncias que hoje reclamam autonomia. A intenção do governo ao realizar o plebiscito sobre o tamanho a partir do qual existiria latifúndio - venceu o de 5 mil hectares - foi delimitar o futuro, sem retroatividade, embora a proposta dos partidários de Morales fosse pela expropriação imediata. O artigo da Constituição ressuscita a retroatividade. Da mesma forma, é considerado traição "atentar contra a unidade da pátria". Com alguma imaginação, pode-se concluir que é exatamente isto o que os movimentos autonomistas da banda rica do país têm feito.
A autonomia negada às províncias será quase plena para as comunidades indígenas, que terão cotas no Conselho Eleitoral - dois dos 5 membros - e no Congresso e na Justiça. Elas terão Justiça própria e direitos sobre recursos naturais em seus territórios. Não só o mapa administrativo do país será confusamente retraçado, como o Estado deixará de ter uma lei e direitos vigentes para todos. O peso dos votos de índios e não índios será diferente. Esse é um caminho irreversível, escolhido pela maioria da população nas urnas. Ele ratifica a divisão do país entre comunidades indígenas e o resto, enfraquece o Estado e torna ainda mais difícil a administração de conflitos, que não foram apaziguados pelo novo marco legal.