Título: A instrumentalização dos direitos humanos e o caso Cesare Battisti
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 28/01/2009, Opinião, p. A8

Acuso o ministro Tarso Genro de instrumentalizar os direitos humanos à sua ideologia política. Seu comportamento faz lembrar a velha máxima: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Os amigos ideológicos (de esquerda) cometem crimes políticos e merecem proteção, os inimigos ideológicos (de direita), crimes comuns (pau neles!) e assim vai. É uma pena que mais um homem público de passado respeitável, como é o caso do ministro, venha tendo sua imagem desgastada pelo exercício desastroso de uma função pública. Em seu passivo, já bastaria o caos em que mergulhou a Polícia Federal, que, nominalmente, subordina-se a seu ministério, para não falar da até hoje mal explicada deportação (desculpe, "retorno voluntário") dos boxeadores que fugiram da delegação cubana no Pan. Nesse passo, corre o risco de engrossar a família dos incríveis políticos que encolheram.

Mas vamos aos fatos.

Com absoluta correção, o ministro sustentou, em 2008, que a anistia outorgada nos estertores da ditadura não alcançou e não poderia alcançar crimes que vulneram os direitos humanos. É o caso da tortura, alvo preferencial do ministro (talvez único). Mas também é o caso, penso eu, da prática do terrorismo (numa definição estrita que compreenda homicídios com motivação política ou ideológica e atentados com uso de artefatos explosivos). Até aí, nenhuma crítica, muito pelo contrário: é preciso acertar contas com o passado, e não simplesmente obliterá-lo, esquecê-lo. A efetiva consolidação de um regime democrático exige a coragem para, com total observância ao devido processo legal e respeito aos direitos do acusado, investigar, julgar e, sendo o caso, punir os crimes cometidos nos períodos de exceção. Medo e subserviência nada têm a ver com democracia. Todo e qualquer ditador - de direita ou de esquerda, não importa - e seus acólitos deveriam temer, sempre, o futuro julgamento pelos seus crimes.

Mas o ministro erra ao pretender que essa limitação dos efeitos da anistia só atinge os crimes cometidos por agentes - oficiais ou não - da ditadura, e não pelos que combateram o regime. Seria imperativo, em sua linha de pensamento, punir apenas os que se valeram do aparato do Estado na repressão aos dissidentes. Já o contra-fogo dos que veicularam sua oposição à ditadura por meio de práticas terroristas - que fique bem claro, a guerrilha, por si só, não caracteriza terrorismo, mas sim o tipo de ação violenta que eventualmente realizar - não deve, por princípio, ser considerado atentatório aos direitos humanos. O condenável, nesse triste reducionismo ideológico, não é o ato em si, mas em nome de quem e por que é praticado. É apenas o terror de Estado que cabe punir. Mas, no fundo, o ministro prega o uso puramente ideológico dos direitos humanos: a esquerda, por definição, não pode infringí-los, já a direita... Há sempre uma ressalva implícita: só há terror de Estado, se a ditadura for de direita, ao passo que, se for de esquerda, o terrorismo só é praticado pela oposição ao regime.

A direita costuma ser avessa aos direitos humanos; já a esquerda, menos bronca e mais astuta, opta por domesticá-los, ou seja, utilizá-los seletivamente. Porém, essa manipulação odiosa só faz desmoralizar uma causa justa. Os direitos humanos ou são universais ou não são nada. Não têm coloração política, social, econômica, religiosa ou ideológica. Valem incondicionalmente. Não dependem de expressa recepção normativa. Não conhecem fronteiras nacionais. Daí que qualquer Estado de Direito democrático está autorizado a processar os que atentam contra eles, como bem mostrou o caso do ditador Pinochet (ainda que sua extradição tenha sido abortada por interesses políticos), e, não custa sonhar, como poderá mostrar um dia, quem sabe, o julgamento de Bush júnior, Fidel Castro e outros tantos. Esses direitos são, por assim dizer, a "religião" da humanidade. Por isso mesmo, os principais atentados contra eles (tortura e terrorismo, entre outros) são, conforme dispõe o art. 5º, XLIII, da Constituição, imprescritíveis e insuscetíveis de graça ou anistia, quer dizer, podem e devem ser punidos a qualquer tempo e em qualquer lugar.

Pois bem, o caso Cesare Battisti reflete exatamente o viés ideológico do modo de pensar do ministro, coberto, é claro, por um tênue véu de argumentação jurídica. Lembrando os principais fatos, Battisti foi condenado a prisão perpétua na Itália, pelo envolvimento em quatro homicídios de burgueses e policiais "condenados à morte" pela organização Proletários Armados para o Comunismo, da qual era um dos dirigentes, atuante nos "anos de chumbo" daquele país. Seu julgamento e condenação foi feito no âmbito de um Estado de Direito. Fugiu para a França durante o processo. Após anos de discussão, sua extradição foi determinada pelo governo francês e confirmada pela Corte Européia de direitos humanos. Nova fuga, desta feita para o Brasil. Capturado pela Polícia Federal, deu-se início ao seu processo de extradição perante o STF. Eis que, para surpresa geral, contra a opinião do Ministério das Relações Exteriores, da Procuradoria Geral da República e do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), e sem aguardar a decisão do processo de extradição em curso no STF (onde é plenamente observado o devido processo legal), o ministro, com o apoio de celebridades políticas e intelectuais (como o filósofo Bernard-Henry Lévy), deliberou conceder asilo a Battisti, por considerá-lo refugiado político.

Não é o caso aqui de analisar os meandros do processo que levou à condenação de Battisti na Itália. Independentemente disso, soam absurdos os argumentos do ministro, especialmente as insinuações de que Battisti seria um perseguido e de que sua condenação teria sido irregular. Nada disso, aliás, impressionou a Corte Européia de Direitos Humanos, tribunal cuja imparcialidade não está em questão.

Tem-se alegado que Battisti foi julgado enquanto se encontrava foragido e que, por isso, não teve oportunidade efetiva de se defender. É o curioso de se pretender que a fuga do réu seja razão para nulidade do processo que o condena. Quando Battisti fugiu, assumiu pessoalmente o ônus de estar ausente do julgamento, o que, aliás, não impediu que sua defesa fosse apresentada por advogado e que seu caso tenha sido submetido a várias instâncias judiciais. O mesmo, por sinal, sucedeu com Salvatore Cacciola e nem por isso Mônaco deixou de extraditá-lo para o Brasil.

Também se alega que a principal evidência para a condenação de Battisti consistiu em sua delação por um ex-companheiro de lutas, interessado naturalmente em negociar a comutação da própria pena. Mas não há como se revisar, em um singelo artigo, o conjunto probatório do caso. Em todo caso, cabe lembrar que, graças à delação premiada, que aliás existe no Brasil e tem ajudado no combate ao crime organizado, se atacou com relativo sucesso a máfia italiana.

Quanto à pena de prisão perpétua a que foi condenado Battisti, cabe lembrar que a extradição somente pode ser concedida pelo Brasil se o Estado que a requer reduzir a privação de liberdade ao máximo de trinta anos, conforme vem decidindo o Supremo Tribunal Federal (nesse sentido, entre outros casos, o processo de extradição 1104/UK).

Dito isso, ignoro se Battisti é culpado ou inocente e seria leviano de minha parte se quisesse pronunciar qualquer opinião a esse respeito. Sei apenas que foi processado e condenado em um Estado de Direito reconhecido e que o Brasil deve respeitar essa decisão (como, aliás, o fez a Corte Européia de Direitos Humanos). Caberá a Battisti, se voltar à Itália, buscar a revisão de sua condenação pelos meios legais existentes (e há, na legislação italiana, o mecanismo da revisão criminal). Não se pode substituir isso por um julgamento midiático e menos ainda pela auto-absolvição que, naturalmente, promoveu em seu livro.

No fundo, tudo se resume ao seguinte para o ministro: Battisti é dos "nossos", quer dizer, um militante da esquerda, e isso, acrescido das provas apresentadas em sua "irrefutável" autobiografia, já é o suficiente para absolvê-lo. Ao final, permita-me o ministro uma indagação: mantidos todos os demais fatos e circunstâncias conhecidos (ceteris paribus, como gostam de dizer os economistas), qual seria sua postura se, digamos, Battisti tivesse militado por um movimento fascista? Tarso Genro poderá entrar para a história como o ministro que entregou a uma ditadura dois refugiados e deu refúgio a alguém condenado por terrorismo em um Estado de Direito democrático.

Resta a esperança de que o Judiciário revise a decisão do ministro, que, a meu ver, aplicou incorretamente a lei de proteção aos refugiados. E, passo seguinte, proceda, na normalidade do devido processo legal, ao exame do pedido de extradição.

Leonardo de Paola é advogado, doutor em Direito pela UFPR, professor da Estação Business School.