Título: Sob a poeira e a dor
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 14/01/2010, Mundo, p. 18

Primeiro-ministro afirma que terremoto de anteontem deixou 100 mil mortos em Porto Príncipe. Moradores relatam cenário dantesco

Em uma frase, a primeira-dama do Haiti, Elisabeth Préval, resumiu o pesadelo que se abateu sobre o país, o mais pobre da América Latina: ¿Caminho por cima de corpos sem vida¿. O presidente, René Préval, admitiu a existência de milhares de mortos. ¿O Parlamento desabou. A Secretaria da Fazenda desabou. As escolas desabaram. Os hospitais também desabaram. Há muitas escolas com muitas pessoas mortas no interior¿, afirmou ao jornal Miami Herald. Mais tarde, o líder haitiano foi encontrado vagando pelas ruas por um repórter da TV CNN. Estava visivelmente abalado e admitiu que não sabia onde dormiria, já que o palácio foi destruído.

Já o premiê haitiano, Jean-Max Bellerive, citou a cifra de ¿mais de 100 mil vítimas¿. Na tarde de ontem, a ONU confirmou a morte de 14 de seus funcionários, mas informou que ¿entre 115 e 200¿ eram dados como desaparecidos. O corpo do tunisiano Hedi Annabi, chefe da ONU no Haiti, foi retirado dos escombros da sede da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah) no fim da tarde de ontem.

O terremoto de 7 graus na escala Richter que devastou a maior parte de Porto Príncipe, na tarde de terça-feira (hora local), chocou o mundo e trouxe dor e luto a várias famílias no Brasil. Até o fechamento desta edição, haviam sido confirmadas as mortes de 11 soldados brasileiros da Minustah e de Zilda Arns. A coordenadora da Pastoral da Criança havia acabado de visitar um centro de ajuda humanitária, em Porto Príncipe, quando foi atingida por escombros do prédio. Sem tempo para chorar os mortos, os capacetes azuis da ONU se uniram aos esforços de resgate.

O subchefe da Minustah, general chileno Ricardo Toro, dividia seu tempo na coordenação dos trabalhos e na busca por sua mulher, que estava desaparecida. Luiz Carlos da Costa, que ocupa o segundo maior cargo da Minustah, também não foi encontrado. Os hotéis Christopher e Montana, que abrigavam a maior parte dos estrangeiros, foram ao chão.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva emitiu, na manhã de ontem, nota de pesar na qual disse estar ¿profundamente consternado¿. Ele lembrou que o povo brasileiro se sente ¿vinculado fraternalmente¿ com o país, em razão da presença da Força de Paz liderada pelo Brasil. Lula externou seu pesar e total solidariedade ao povo haitiano e à família das vítimas brasileiras, em especial à de Zilda Arns. Mais tarde, não escondeu a emoção ao falar da tragédia. ¿O Haiti já vive o problema de ser o país mais pobre do mundo. Sinceramente, aquele povo não merecia mais essa desgraça na vida deles.¿

Por sua vez, o colega norte-americano, Barack Obama, prometeu uma intervenção ¿rápida, coordenada e firme¿ para ajudar o Haiti. O Pentágono ordenou que navios e porta-aviões se dirigissem ao Caribe e avalia ¿seriamente¿ o envio de tropas para garantir a segurança. O Banco Mundial anunciou o desbloqueio de uma verba suplementar de US$ 100 milhões, em caráter urgente, destinada ao país.

O Correio teve acesso a relatos impressionantes sobre a devastação produzida pelo tremor em Porto Príncipe. Pela internet, a padeira Tanya Lemaire, 29 anos, disse que precisou dormir ao relento na madrugada passada. ¿As pessoas estão famintas, desesperadas e com dor, precisam de ajuda médica, muitas delas perderam suas casas¿, relatou. A terra começou a tremeu pouco após ela ter saído do trabalho. ¿Senti um pequeno abalo e pensei que fosse um grande caminhão passando. Vi uma igreja cair bem na minha frente¿, contou. Quando caminhava com dois funcionários e a irmã pela rua, deparou-se com estudantes correndo em pânico. ¿Foi horrível e assustador. As pessoas estavam com o rosto coberto de sangue. Havia carros presos sob árvores. A cidade está sob uma camada de poeira¿, acrescentou. Segundo ela, uma área comercial conhecida como Bas Delmas está devastada. ¿Todos os pequenos empresários morreram lá. Há muitos prédios destruídos na maior parte de Porto Príncipe.¿

¿Oh, meu Deus. Que sensação ruim!¿. Assim, a assistente administrativa Geraldine Scown, 24 anos, referiu-se à catástrofe. Também pela internet, ela contou que estava dentro do escritório, quando ouviu um barulho semelhante ao de um trem. ¿Todas as janelas caíram, veículos atropelaram gente, colidiram com outros carros. As pessoas correram para o primeiro andar, gritando e chorando¿, lembra a moradora de Pétionville, um bairro arrasado pelo tremor.

Gregory Van Schoyck, membro de uma organização humanitária cristã, ajudava no resgate às vítimas, no centro de Porto Príncipe, quando atendeu a um telefonema da reportagem. Ele descreveu um cenário horripilante. ¿As ruas estão repletas de corpos, empilhados e cobertos com lençóis brancos. Não posso dizer quantos mortos vi, talvez centenas. Muitas casas foram esmagadas. A população dormiu no meio das ruas, com medo de as paredes das ruínas desabarem. E há milhares de pessoas caminhando por todos os lugares¿, reportou.

Aos gritos, Gregory interrompeu a entrevista por volta das 15h (18h em Brasília). Minutos depois, ele contou ao Correio que uma haitiana de 20 anos acabava de ser retirada com vida dos escombros. ¿Achávamos que ela tivesse morrido há mais de 12 horas. Nenhum som vinha do local onde ficava sua casa, e seus quatro familiares não resistiram. Quatro horas atrás, ouvimos alguém chorando. Era a garota, que passou 23 horas sob as ruínas.¿ Às 5h (hora local), Greg deixou sua residência, a 128km de Porto Príncipe, e foi à capital para ajudar. ¿Rezem pelo Haiti, as pessoas precisam de auxílio¿, pediu.

O Haiti já vive o problema de ser o país mais pobre do mundo. Sinceramente, aquele povo não merecia mais essa desgraça na vida deles¿

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil

As ruas estão repletas de corpos, empilhados e cobertos com lençóis brancos. Não posso dizer quantos mortos vi, talvez centenas. Muitas casas foram esmagadas, uma escola virou escombros¿

Geraldine Scown, 24 anos, analista administrativa, moradora de Porto Príncipe