Título: Os silêncios de Davos
Autor: Levy , Joaquim
Fonte: Valor Econômico, 18/02/2009, Opinão, p. A12

A "falta de solução" por parte do Fórum Econômico Mundial de Davos talvez se explique pela gradual compreensão de que a indisciplina financeira não foi um fenômeno independente, mas um mecanismo para viabilizar a exuberância fiscal dos EUA. A "flexibilização" do sistema financeiro, com incentivos para ele tomar cada vez mais riscos, apenas concorreu para viabilizar uma política macro que procurou substituir a estagnação da renda familiar pelo endividamento e pela subida do preço de ativos, enquanto o setor público aumentava seus gastos, inclusive militares, e reduzia impostos seletivamente.

Dado este fundo macroeconômico, é difícil empresas e bancos coordenarem sozinhas uma saída do buraco. Sem o presidente Barak Obama, e apenas com palavras genéricas da sua emissária, os primeiros-ministros Brown e Wen Jiabao, por exemplo, se concentraram nos problemas. O primeiro-ministro Singh não foi porque havia sofrido um ataque cardíaco.

A grande questão do ajuste macroeconômico dos EUA e suas consequências para os outros países foi abordada apenas tangencialmente. A maioria concorda que ele é inevitável. O difícil é coordenar as ações para evitar a catástrofe ao executá-lo.

Para que o ajuste tenha sucesso, é preciso ter em mente que a principal decisão estratégica dos EUA nos últimos 20 anos foi o governo Clinton apostar na integração da China através da globalização, como forma de aumentar a segurança mundial. A China mostrou grande dinamismo e a globalização revolucionou a Ásia, apesar de todos os seus custos. O comércio e as finanças difundiram um crescimento mundial sem paralelo desde o auge vitoriano.

Essa estratégia, no entanto, foi sendo esgarçada pela emergência de questões cuja discussão foi sistematicamente afastada pelo governo Bush. Criou-se assim uma situação insustentável. Guardadas as proporções, lembra o que aconteceu com a Argentina há alguns anos, onde dilemas sobre reformas, leniência com o financiamento externo e incapacidade de se fazer um ajuste precipitaram o caminho para a crise, percebido por muitos, mas difícil de reverter. Agora, o mercado dificilmente terá capacidade de se autorreorganizar, e a coordenação entre governos é essencial.

A possibilidade de coordenação aumenta quando países aceitam suas responsabilidades. É encorajador que, no discurso de posse, o presidente Obama tenha reconhecido que a economia americana está "abalada, consequência da ganância e irresponsabilidade de alguns, mas também da nossa incapacidade de fazer escolhas difíceis e nos prepararmos para uma nova época", e que "o tempo de empurrar decisões desagradáveis já passou".

Também é importante vislumbrarem-se oportunidades. Se o discurso da manipulação da taxa de câmbio na China tende apenas a acirrar ânimos, reforçar o consumo dos chineses pode ser bom para eles e para o mundo.

Imagine se o Brasil inventasse que a taxa de poupança deveria ser de 40% e, para tanto, deveriam ser extintos o SUS, a Previdência Social, o seguro-desemprego e todos esses mecanismos de seguro público que diminuem a necessidade do cidadão comum guardar dinheiro e que o modelo capitalista brasileiro oferece?

A China ampliar sua rede de proteção social também é bom para o Brasil. Quanto mais comida e casa os chineses quiserem comprar, melhor. E um sistema de seguro público tenderá a equalizar o custo do trabalho na escala mundial. A China optar por este caminho não é um dever, mas talvez uma oportunidade, cuja hora pode estar chegando.

Em Davos, não chegou a haver silêncio em torno do Brasil - afinal, a Petrobras brilhou, nossa situação fiscal continuou a causar inveja e o nosso Banco Central recebeu merecidos elogios. Mas as vantagens do Brasil no cenário atual foram mais sussurradas do que proclamadas: a maior inclusão social e a harmonia religiosa; a autossuficiência alimentar e energética; a diversificação da indústria e a relativa robustez do sistema financeiro. Tudo isso deve ser relembrado sem ufanismo, apenas para mantermos a cabeça fria. Afinal, mesmo com a contração do crédito mundial, o Brasil tem condições "friedmanianas" de crescimento: se não houver desconfiança na política pública, com a geração, por exemplo, de esqueletos fiscais, o mais provável é que consumidor volte a ter confiança para comprar seu carrinho ou geladeira, porque percebe como permanentes algumas das vantagens listadas acima. A acomodação da política monetária também ajuda, o que permite ter calma e clareza nas políticas em geral, para se manter o equilíbrio.

De fato, talvez depois do "silêncio" de Davos, o mantra do futuro seja o reconhecimento da importância de economias equilibradas. Equilíbrio que não é a priori contrário ao choque de investimento público nos EUA e na China, ao nosso PAC ou ao reforço à ciência e tecnologia.

O foco no equilíbrio tampouco diminui a importância de garantir no curto prazo a viabilidade dos bancos, inclusive no Brasil. Mas a discussão macro é hoje mais importante do que discussões sobre arquitetura financeira, mesmo que essas deem um bom palanque. Grande parte dos excessos das finanças desaparece quando governos ficam mais sóbrios, e muitas das questões da regulação de produtos financeiros não têm respostas definitivas. Essas discussões são complexas e no âmbito político tendem a se concentrar na guerra que já passou.

Será alentador, portanto, se a macroeconomia pautar, por exemplo, a reunião do G-20 em Londres, que acontece alguns dias antes o encontro do capítulo latino americano do Fórum Econômico Mundial, a ser realizado no Rio de Janeiro de 14 a 16 de abril. Se assim for, não haverá silêncio no "Davos do Rio". As lições da política econômica brasileira vão ser estudadas em um contexto mundial que valoriza o equilíbrio, e haverá vozes afinadas para a América Latina enfrentar de maneira coordenada os desafios da atual situação do mundo, criando emprego, riqueza e melhor distribuição de renda.