Título: Brasil fica órfão de Zilda Arns
Autor: Campbell, Ullisses
Fonte: Correio Braziliense, 14/01/2010, Mundo, p. 21

Fundadora da Pastoral da Criança é uma das vítimas do tremor. Ela estava em Porto Príncipe para divulgar programa de apoio à infância

São Paulo ¿ Zilda Arns mal chegou da longa viagem, na terça-feira, e já foi deixando as malas no hotel onde se hospedou com a freira Rosângela Altoé, em Porto Príncipe. O voo de 18 horas, com duas escalas, não cansou a médica sanitarista e fundadora da organização não governamental Pastoral da Criança, que queria dar uma volta na capital haitiana. Cansada, Rosângela não quis acompanhar Zilda, que seguindo o conselho de diplomatas, esperou a chegada do primeiro-tenente do Exército Brasileiro Bruno Ribeiro Mário para sair do hotel, já que o país ainda vive a ressaca de uma guerra civil.

Zilda caminhava pelas ruas com o primeiro-tenente quando ocorreu o terremoto que devastou o país. Segundo relatos de Rosângela às missionárias da Pastoral da Criança de Curitiba, a missionária morreu provavelmente de forma rápida, atingida na cabeça por escombros de prédios. Tinha 75 anos. Bruno também não sobreviveu. O corpo da missionária já está à disposição do Exército, mas ainda não foi possível confirmar o dia que ele retornará ao país.

Considerada uma mártir na defesa dos direitos das crianças e dos mais pobres, Zilda Arns perdeu a vida em outro país do mesmo jeito que viveu: buscando ajudar os mais necessitados. Ela pretendia estabelecer ações da Pastoral no Haiti. Participaria de um encontro com bispos para tratar de ações voluntárias e ontem daria uma palestra na Conferência Nacional dos Religiosos do Caribe. Falaria sobre a metodologia e resultados da Pastoral da Criança. ¿Vou compartilhar com vocês uma verdadeira história de amor e inspiração divina, um sonho que se tornou realidade¿, diria no discurso que preparou.

A tragédia abalou o país e consternou autoridades, religiosos e os voluntários que atuavam com ela. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, disse que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu com pesar a notícia. ¿O presidente lamentou muitíssimo a morte de Zilda. Ela era uma pessoa de grande projeção no país, que estava lá fazendo obra de assistência humana de grande importância. É uma grande tragédia¿, disse o ministro.

Considerada uma mulher simples, a médica tinha a fala mansa e gestos delicados. Sorria sempre quando encontrava crianças desnutridas e as carregava no colo como filhos. A alegria acabava contagiando os pequenos, que, apesar de fracos, acabavam rindo também. ¿A doutora Zilda nos ensinava a nunca olhar para uma criança desnutrida com pena. Aprendi com ela a acolher e a amar¿, ressalta a voluntária Maria Ceiça, que por 21 anos trabalhou com ela.

Nascida em Forquilinha (SC), Zilda era a 12ª de 13 irmãos, sendo que cinco deles são religiosos. ¿Zilda dava a vida pelas crianças, era sempre alegre e disposta. Uma de suas crenças era que a espiritualidade era primordial, pois sem ela a vida humana não serve para nada¿, disse Ilda Arns, 83 anos, uma de suas irmãs. ¿Toda viagem que ela fazia, ligava e pedia uma oração para conseguir sustentar o trabalho. Eu sempre respondia: Oro por você diariamente¿, contou.

Ditadura Na época do regime militar, Zilda Arns lutou contra a ditadura. Teve três revezes na vida pessoal e uma mágoa na vida pública por causa de perseguição política. Ela sofreu bastante a perda de um filho durante o parto, a morte da filha caçula aos 30 anos em um acidente de carro e a perda do marido, um grande apoiador das causas humanitárias. Funcionária pública da Secretaria Estadual de Saúde do Paraná, na década de 1980, foi impedida de desenvolver projetos sociais por causa de interferências políticas. ¿Ela sempre lembrava desse fato¿, conta um dos filhos, Nelson Arns, 45.

Nelson relembra que Zilda gostava de viajar ao Haiti para levar solidariedade e disseminar trabalho voluntário. Quando foi confirmada a viagem nesta semana, chegou a vibrar de alegria, pois havia missões importantes fora da agenda oficial a desenvolver junto à população.

Dom Geraldo Majella, que ajudou Zilda a fundar a Pastoral da Criança no Brasil, embargou a voz ao comentar sua morte. O arcebispo de Salvador lembra que ela era uma entusiasta da ideia até então absurda de acabar com a mortalidade infantil apenas com um soro caseiro composto de água, açúcar e sal. ¿Nunca vi uma mulher humanitária tão dedicada. O que mais impressionava era o seu carisma junto ás crianças pobres. Quando começava a falar, todo mundo prestava atenção. Nenhum de nós se entregou de fé e alma como ela nessa missão¿, reconheceu.

Rede voluntária A Pastoral da Criança tem 350 mil voluntários no país, atua nos 26 estados e no Distrito Federal e atende mais de 1.200 famílias, sendo 84,6 mil gestantes e 1,6 milhão de crianças. Assistidos que ficam órfãos com a morte da médica, apontada como a mãe da solidariedade e foi indicada quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz.

Zilda, porém, não era uma unanimidade. Ao se posicionar contra o aborto e as pesquisas com células-tronco embrionárias, ganhou desafetos entre militantes feministas, cientistas e médicos.

Ela não aceitava negociar com a vida humana s, diz o irmão Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo. Procurado pelo Correio para comentar a tragédia, o religioso limitou-se a dizer: ¿Não estou em condições de falar. Estou profundamente abalado com essa notícia. Que o nosso Deus acolha no céu aqueles que na terra lutaram pelas crianças e pelos mais desamparados¿. (Colaborou Manoela Alcântara)

Zilda teve uma vida maravilhosa e morreu ao lado dos mais necessitados, a quem sempre assistiu. Ela está no coração de Deus¿

Dom Paulo Arns, arcebispo emérito de São Paulo e irmão de Zilda

Marie-Pierre Poirier, representante do Unicef no Brasil

Profundamente consternado com a tragédia, transmito meu pesar e minha total solidariedade ao povo haitiano e à família das vítimas brasileiras, em especial à de Zilda Arns¿

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), presidente da República

Hoje o mundo perdeu uma figura generosa que conseguia mobilizar e dar esperanças às pessoas. A Unesco lamenta a perda da dra. Zilda Arns, importante parceira que tanto fez pela infância no Brasil e no mundo¿

Vincent Defourny, representante da Unesco no Brasil

A atuação dessa grande mulher e grande sanitarista brasileira foi essencial para elevar a criança a uma condição prioritária dentro das políticas públicas brasileiras¿

José Gomes Temporão, ministro da Saúde

Memória Cidadã de Brasília

Zilda Arns visitava com frequência Brasília, cidade que gostava de coração, segundo conta seu filho Nelson Arns. Na capital federal, não só cumpria agenda oficial, indo à sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e mistérios, como visitava comunidades pobres. Seu trabalho humanista lhe rendeu, em 2004, o título de cidadã honorária de Brasília.

Quando a Pastoral da Criança do DF completou 15 anos, em 2005, Zilda veio para as comemorações e participou de uma missa em ação de graças celebrada pelo arcebispo dom João Braz Aviz. Em 2007, visitou comunidades carente na Estrutural e em Ceilândia e conseguiu arregimentar, com a sua simpatia, uma rede de voluntariado que atende até hoje pessoas carentes, crianças desnutridas e idosos desamparados em regiões carentes.

Na Vila Estrutural, por exemplo, 25 voluntários atendem 165 crianças e 40 gestantes, que aprendem a importância da higiene, da amamentação e do acompanhamento pré-natal. Segundo as contas da Pastoral da Saúde local, 20% dos pobres do DF são atendidos pela organização não governamental ligada à Igreja Católica.

Em todas as oportunidades que tinha, Zilda viajava a Brasília. Em 2004, participou da entrega do Prêmio Jovem Cientista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Naquele ano, as vencedoras eram todas garotas e ela arrancou gargalhadas ao comentar, durante discurso, que as mulheres estavam avançando em tantas áreas que, em breve, os homens teriam de montar organizações para fazer valer os seus direitos.