Título: Em defesa do BNDES
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 02/03/2005, Opinião, p. A17

Sou funcionário do BNDES desde 1984. Ao longo de mais de duas décadas, convivi com 19 presidentes do banco. Aprendi que estes passam, mas os funcionários ficam e a reputação deve ser construída a cada dia. Considero que, com todas as justas críticas que se possa fazer ao BNDES ao longo dos seus 53 anos, ele é uma das instituições do setor público brasileiro com um dos melhores conjuntos de quadros de servidores. É um patrimônio do país, da mesma forma que - só para citar os casos mais conhecidos - Banco Central, Itamaraty, STN, Receita, IPEA, IBGE ou Petrobras. Críticas ao que funciona mal podem e devem ser feitas. Estou longe de sugerir que o BNDES não possa ter cometido erros, mesmo com a ressalva de que nem sempre suas ações foram de responsabilidade do banco. Isso porque, em muitos casos, atuou a serviço da orientação dos governos, às vezes com políticas controversas, como aquelas que beneficiaram parte da indústria nos anos 70 com o mecanismo da correção monetária inferior à inflação. Nos últimos dias, porém, o nome da instituição voltou a ficar no centro do debate, de uma forma que atinge a sua reputação, com três equívocos que, como "militante" do BNDES, julgo apropriado esclarecer. O primeiro é a idéia de que a privatização teria sido um fracasso. Isso foi repetido até o cansaço nas campanhas eleitorais de 1998 e 2002 e converteu-se em exemplo de como uma falácia repetida milhares de vezes pode virar uma verdade em termos da repercussão política. É curioso como a atribuição do fracasso não é acompanhada de maior fundamentação. No que a privatização teria fracassado? A Telebrás teria sido vendida a "preço de banana"? As empresas privatizadas faliram? Em minha opinião, a razão da percepção de fracasso é dupla. A primeira é a tímida defesa da privatização feita pelo próprio partido que estava no governo até 2002, que tinha com o tema uma relação ambígua, devido ao temor de ser confundido com a defesa de posições chamadas de "neoliberais". Quando alguém ataca, e quem deveria se defender não o faz, é natural que o público tenda a julgar que a crítica é correta. A segunda razão é a crise energética de 2001, que, com grande competência política, a oposição da época atribuiu à privatização, quando a rigor as empresas de eletricidade que tinham sido vendidas eram distribuidoras, uma vez que mais de 70 % da geração continuou sendo estatal - nem Furnas, nem CHESF, nem Eletronorte foram privatizadas. O fato, porém, é que quando daqui a 20 ou 30 anos for feita uma avaliação isenta do tema, a história deverá avaliar como positivo o fato de o país nos anos 90 ter retirado da esfera da barganha política empresas como CSN, Embraer, telefônicas e Vale do Rio Doce. Ou alguém duvida que, se elas não tivessem sido privatizadas, seriam hoje objeto da cobiça dos partidos, com indicações nem sempre técnicas e feitas muitas vezes para acomodar candidatos derrotados? Como cidadão, o leitor acha que essas empresas são mais eficientes como são geridas hoje pelo setor privado, ou como funcionariam se cada um dos cargos de direção dessas empresas tivesse que ser negociado com um partido diferente?

Criticar o BNDES por emprestar à TJLP é um bom debate, mas a forma como o banco aparece no noticiário atinge a reputação da casa e dos seus funcionários

O segundo equívoco é a idéia de que as privatizações teriam ficado envoltas em espécie de "véu de suspeição". A imagem que se passa com esse tipo de discurso é que teria havido uma espécie de "jogo de cartas marcadas". Isso afeta a reputação da instituição pois, em boa medida, o conteúdo técnico da privatização foi obra de técnicos do BNDES - e foi regularmente auditado pelo TCU. Foi pelo fato do processo ter tido um bom embasamento técnico que ele foi bem-sucedido - basta comparar com alguns vizinhos latino-americanos. O país deveria ter orgulho disso. Não tenho procuração para defender ninguém e os temas jurídicos ligados à execução das garantias fogem à minha competência. Contudo, o que como economista posso afirmar é que a existência de cartas marcadas é incompatível com o mecanismo de leilão. Quando se dá a entender que havia acertos para a escolha do vencedor, se passa à sociedade a idéia de que alguém pode ter sido cooptado para que uma empresa em particular fosse vencedora. Ora, como isso seria possível, se a venda era pelo maior preço, e quem desse o lance mais alto ficava com a estatal? Essa suspeita padece de um erro de lógica! Finalmente, o terceiro equívoco é a suposição de que, no final de 2002, o BNDES estaria em uma situação financeira crítica. Que existam créditos que possam ser temporariamente bloqueados como possíveis perdas, enquanto se faz uma negociação das condições de pagamento dos empréstimos, é uma situação comum a qualquer instituição financeira. O que importa é o que acontece ao final da negociação. E, no caso do BNDES, foi coroada de êxito e sem precisar de nenhum aporte da União, o que permitiu voltar a liberar recursos inicialmente provisionados. Como é possível, olhando o que aconteceu, que uma instituição que teve, exercício após exercício, lucros expressivos em cada um dos últimos anos, fosse considerada em situação financeira crítica? Evidentemente, a premissa que teria dado origem a essa suposição se revelou errada. Em resumo, podemos dizer que: a) a privatização foi um sucesso, pois arrecadou em torno de US$ 100 bilhões em uma década e a grande maioria das empresas vendidas está hoje melhor do que na época da desestatização, além de estar investindo muito mais; b) é impossível escolher o vencedor da privatização quando uma empresa é vendida em um leilão; e c) é estranho julgar que o BNDES estava em situação crítica no final de 2002, quando ele continuou gerando lucros expressivos em 2003 e 2004. Criticar o BNDES porque empresta à TJLP é um bom debate. Já a forma em que o banco tem aparecido no noticiário nos últimos dias, com acusações graves e sem fundamento, é algo muito diferente, que atinge a reputação da casa e dos seus funcionários.