Título: Aneel vai usar tecnologia contra "gatos"
Autor: Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico, 03/03/2005, Brasil, p. A7

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) prepara uma ofensiva para combater fraudes contra as distribuidoras, reduzindo o furto de energia e os elevados índices de inadimplência que, em última instância, se revertem em tarifas maiores para os consumidores. Até o fim de abril, a agência reguladora dará partida à mudança das regras que definem as relações entre concessionárias e clientes, revisando a resolução 456. O diretor-geral da Aneel, Jerson Kelman, afirma que tecnologias mais modernas serão adotadas. Entre as medidas em análise, pelo menos três merecem destaque: a tensão dos cabos de distribuição deverá passar de baixa para média, dificultando as ligações clandestinas conhecidas como "gatos"; os "relógios" analógicos que medem o consumo de energia dentro das residências seriam substituídos por aparelhos digitais; e as empresas poderão vender aos consumidores energia pré-paga, em formato semelhante ao que fazem hoje as operadoras de telefonia celular. Foto: Evelson de Freitas/Folha Imagem

Direção da Aneel prepara pacote de medidas para combater o furto de energia - que penaliza o consumidor - e entre estas destaca-se a adoção de relógios digitais, no lugar dos analógicos "O furto de energia e a inadimplência são um câncer que penaliza os consumidores honestos", diz Kelman, um engenheiro civil com PhD em hidrologia que até janeiro comandava a Agência Nacional das Águas (ANA), indicado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em dezembro de 2000. Unanimidade entre os especialistas do setor, Kelman, 56 anos, sobreviveu ao loteamento dos cargos das agências a indicações políticas no governo Lula. Por insistência da ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, o comando da Aneel ficou nas mãos de um técnico. E, nesta entrevista ao Valor, ele expõe o que pretende fazer nos quatro anos de mandato. Kelman descarta o risco de novas crises energéticas a partir de 2009. Diz que a grande diferença entre o momento atual e o racionamento de 2001 é que ainda dá tempo para agir e buscar alternativas. Nos próximos dias, a Aneel terá uma missão indigesta: lidar com esqueletos de térmicas que abastecem o Ceará e Pernambuco, gerando reajustes elevados para os consumidores. "Posso lhe adiantar que o impacto tarifário será alto." A seguir, os principais trechos da entrevista: Valor: Em um momento de licitação de novas usinas hidrelétricas, o adiamento da revisão tarifária da Light pelo Ministério da Fazenda não pode causar uma repercussão negativa junto aos investidores internacionais? Jerson Kelman: Eu imagino que o Ministério da Fazenda tenha levado isso em consideração, é o papel da equipe econômica. Não falei com o ministro Palocci, mas creio que ele deve ter avaliado todos os "trade offs". De um lado, a repercussão junto aos eventuais investidores. Do outro lado, o peso dos preços administrados nas taxas de inflação. A escolha dele não foi simples. Olhando estritamente a questão do setor elétrico, a Aneel teria autorizado agora um reajuste extraordinário para a Light, se tivesse segurança jurídica. Mas olhando o país como um todo, se eu fosse o ministro da Fazenda, sinceramente não sei o que faria. Valor: A Light diz que os problemas financeiros vividos por ela são agravados pelos elevados níveis de inadimplência e de furto de energia? Isso é verdade? Kelman: Sim. A Ceade (companhia estadual de saneamento do Rio) não querer pagar em dia mostra que existe um desarranjo total. Os furtos na área da Light também são muito altos. Essa é uma situação grave. Cerca de 20% da energia que a distribuidora compra das geradoras é furtada. Desse total, dois terços não são em favelas, ao contrário do que se pensa. Existe um conceito espalhado pelo país, mas concentrado no Rio de Janeiro, de que o furto de energia é algo aceitável. Precisamos acabar com isso. Quando alguém furta energia da Light pensando que penaliza uma multinacional forte, equivoca-se profundamente. Só está encarecendo as tarifas dos consumidores honestos. Valor: O que se pode fazer em termos de combate à inadimplência e ao furto de energia? Kelman: Recentemente vi uma experiência da Ampla, a antiga Cerj, em São Gonçalo (RJ). O que mais me impressionou na conversa com o presidente da empresa foi o relato das iniciativas tomadas para combater a inadimplência e o furto de energia em países como o Peru e a Colômbia. Ele mencionou que várias dessas iniciativas não deram certo no Brasil. A inventividade do brasileiro é enorme e existem quase que empresas especializadas em fraudes. Esse tema extrapola a economia do setor elétrico, é uma questão de cidadania. Valor: E a Aneel, tem como agir? Kelman: Tem, e defini uma estratégia de combate ao furto de energia como uma das prioridades da minha gestão. Para enfrentar o problema, a Aneel vai fazer uma reforma da resolução 456, que trata da relação entre consumidores e concessionárias. Estamos estudando como revisar a resolução. É um assunto para este ano. Em fins de abril, teremos uma minuta pronta, que colocaremos em audiência pública. Tudo vai ser muito discutido, mas pretendemos permitir a adoção de tecnologias mais modernas. O furto de energia e a inadimplência são um câncer que penaliza os consumidores honestos. Valor: Na prática, que medidas podem ser tomadas? Kelman: Primeiro, é preciso criar um sistema de distribuição que seja mais robusto e resistente a furtos diretamente das linhas. Pode-se mudar a tensão dos cabos de distribuição de baixa para média. É mais caro, mas vale a pena. Segundo, substituir os relógios analógicos dentro das residências, que ninguém entende como funcionam, por medidores digitais do consumo de energia. Aquilo só serve para fraudar. Muito melhor do que ponteirinhos que ninguém sabe ler é o acesso à informação de forma simples e rápida. Valor: Como funcionam os medidores digitais? Kelman: Eles poderão dar as informações não só em quantidade de energia consumida, mas também em reais. Os medidores continuam dentro das casas de cada cidadão, mas seus dados são espelhados em outros lugares e com isso é possível fazer a cobrança exata dos consumidores, diminuindo o risco de fraude. Eventualmente, poderemos introduzir a venda de energia pré-paga, assim como fazem as operadoras de telefonia celular. Já existe tecnologia para isso, as distribuidoras demonstraram interesse e o efeito para atacar a inadimplência pode ser muito bom. Valor: O sr. percebeu disposição das empresas em investir nessas novas tecnologias? Kelman: Sim, porque elas ajudam a evitar tanto o furto quanto a inadimplência. Hoje, quando se fecha o certo contra a inadimplência, estimula-se o furto. Valor: As distribuidoras reclamam da dificuldade em cortar energia de clientes inadimplentes... Kelman: Os cortes por causa de inadimplência têm encontrado, historicamente, grande resistência na Justiça brasileira. Dou um exemplo: a Light interrompeu o fornecimento de energia para o prédio administrativo da Cedae, no Rio. Ela não mexeu no abastecimento de eletricidade às estações de tratamento e bombeamento. Mesmo assim, quase na mesma hora, um juiz concedeu liminar dizendo que não podia. Qual a mensagem? A de que se pode atrasar o pagamento sem conseqüências. Não houve um entendimento de que a inadimplência prejudica todos os consumidores que pagam em dia. Felizmente, no entanto, isso está evoluindo para melhor. Valor: O sr. tem outras prioridades para a sua gestão? Kelman: No meu primeiro mês de Aneel, dois assuntos capturaram a minha atenção. Além do furto de energia, que pretendo reduzir fortemente em quatro anos, precisamos dar mais atenção à Conta de Consumo de Combustíveis (CCC). O desembolso que as distribuidoras fazem para bancar a CCC [conta cuja arrecadação é usada para cobrir os custos do uso de combustíveis fósseis para geração termelétrica, principalmente na região Norte] é repassado aos consumidores por meio das tarifas. O governo acabou de contingenciar R$ 15 bilhões em investimentos, mas pouca gente nota que só a CCC custa R$ 3 bilhões por ano. É mais da metade do que se deve gastar na transposição do rio São Francisco. Valor: O que é possível fazer para gastar menos com a CCC? Kelman: Existe um programa para estimular a substituição de queima de óleo diesel na região Norte por fontes alternativas renováveis, sejam pequenas centrais hidrelétricas ou usinas de biomassa. Mas o resultado até agora tem sido pífio. Precisamos identificar o porquê disso e já mobilizei os técnicos para elaborar um diagnóstico. Também pedi à área de fiscalização que aperte o controle sobre o gasto de combustível. Valor: A Aneel marcou um novo leilão de energia existente para 31 de março, mas a expectativa é que a oferta atual não satisfaça a demanda para todo o ano de 2009. Corremos risco de crise energética, caso não sejam licitadas as novas usinas hidrelétricas que aguardam licenciamento ambiental? Kelman: No limite, se as licenças ambientais não forem concedidas a tempo, a má notícia é que a alternativa imaginada para atender a demanda em 2009 não se revelará viável. A boa notícia é que ainda teremos tempo suficiente para adotar uma outra alternativa. Em vez de optar pela energia hidrelétrica, que é mais barata, construiríamos usinas térmicas. Ficaria claro para para os consumidores o quanto a sociedade brasileira paga em troca do legítimo desejo de ter a preservação ambiental garantida. Valor: Mas pode haver racionamento a partir de 2009? Kelman: Não haverá necessidade de racionamento. O prazo para a construção de uma hidrelétrica é de cinco anos, mas no caso das térmicas é de três anos. Há tempo suficiente, repito, para evitar a falta de energia. Mas isso não será feito sem custos ambientais. As térmicas contribuem para o efeito estufa e, em termos econômicos, são mais caras. Valor: O problema é que muitos investimentos em térmicas na época do racionamento depois se revelaram pouco atrativos em um momento de sobra de energia. Fica difícil atrair novos investimentos... Kelman: É por isso que a Aneel tem a posição de que as térmicas devem ser vistas como uma reserva, como uma garantia de plena energia para o país. O custo das térmicas deve ser pago sem olhar se os reservatórios estão cheios ou vazios no momento. O papel da Aneel nesse assunto é o de garantir a essas usinas o que estiver garantido pelos contratos. Elas não podem virar "mico". Caso contrário, ninguém construirá novas. E elas podem ser necessárias. Um segundo problema diz respeito às usinas térmicas que têm contratos fechados, mas com uma única empresa distribuidora, com base no modelo anterior do setor elétrico. Valor: Que problema é esse? Kelman: Em 2000, o ambiente era a iminência de um racionamento de energia. Para viabilizar as térmicas, houve todo o tipo de incentivo às distribuidoras para firmarem contratos de longo prazo com essas usinas. Algumas das conseqüências vão ser sentidas agora. É o caso da Companhia de Eletricidade de Pernambuco (Celpe), que terá de trocar contratos antigos de compra de energia por contratos novos com termelétricas, com impacto tarifário. Havia um preço-teto para o comércio de energia, que foi utilizado. E o pior é que os preços altos foram concentrados em territórios pequenos, ou seja, poucos consumidores terão de arcar com tarifas caras. No novo modelo do setor elétrico, isso foi resolvido por meio da compra de energia em leilões e o rateio dos custos por todos os consumidores do país, mas ainda restam esses esqueletos no armário. Valor: Em que Estados haverá esse impacto tarifário? Kelman: Pernambuco e Ceará. Valor: Os consumidores pagarão caro? Kelman: Posso lhe adiantar que o impacto tarifário será alto, em qualquer hipótese, talvez muito alto. Valor: E não há possibilidade de minimizar esse impacto? Kelman: A pior coisa para acontecer seria dizer hoje: "bom, você investiu lá atrás, mas agora temos água nos reservatórios e o azar é seu". Isso a Aneel nunca fará, não vai acontecer. Se aqueles que construíram térmicas no passado levarem o cano, eles não virão mais. Valor: O que se pode fazer para acelerar o tempo de análise dos estudos de impacto ambiental das novas hidrelétricas? É pouco provável que elas recebam licenças para serem licitadas ainda no primeiro semestre. Kelman: Parte do problema do licenciamento ambiental está no receio do licenciador em tomar uma decisão. A lei de crimes ambientais faz com que ele seja pessoalmente responsável pela licença. Geralmente, a análise só olha um empreendimento específico e deixa de considerar os impactos, por exemplo, de uma térmica que terá de ser construída na ausência de novas hidrelétricas. Mesmo que o licenciador tenha visão muito abrangente e equilibrada entre meio ambiente e desenvolvimento, ele se inibe em tomar qualquer decisão porque quem o acusará e quem o julgará verá somente aquele empreendimento isolado. Valor: A lei de crimes ambientais deveria ser alterada? Kelman: Esses "trade offs" não costumam ser analisados pelo Ministério Público nem pela Justiça. Portanto, o primeiro passo é adaptar o artigo específico da lei de crimes ambientais que trata da responsabilidade pessoal do licenciador. Não existe empreendimento sem impacto ambiental nulo. Mas por que ele vai tomar uma decisão, se depois terá de responder por ela, pessoalmente, na Justiça? Valor: As obras de transposição do rio São Francisco agora esperam licença ambiental para começar. Como diretor-presidente da ANA, o sr. assinou um parecer dizendo que existe água suficiente para o projeto. Mas especialistas renomados dizem que executar a transposição é como tirar sangue de um doente terminal. Kelman: Quero afirmar uma coisa, não como ex-diretor da ANA, mas como hidrólogo: essa discussão está equivocada. Os argumentos que têm sido utilizados são simplórios e muito pobres. Dizer que o semi-árido nordestino não precisa de água é uma mentira. O projeto de transposição tira continuamente 1% da vazão média do rio. Quando a barragem de Sobradinho estiver vertendo, a captação será de 3% da vazão. O São Francisco não está morrendo e não vai morrer.