Título: Um cenário virtual ameaça esnobismo
Autor: Wanderley Guilherme
Fonte: Valor Econômico, 03/03/2005, Política, p. A10

Concorreram para a eleição do deputado Severino Cavalcanti à presidência da Câmara os deputados do PSDB e PFL, em lampejo de PT radical, os sistemáticos opositores do PMDB, os insatisfeitos com a falta de palavra do comando petista, os que desejam benesses e, em desconhecida extensão, os rebelados contra a supremacia do Executivo, extremada pela volúpia centralizadora governamental. Na euforia que acompanha movimentos de massas rebeladas - quebra-quebras, linchamentos - ninguém se preocupa com o custo do sentimento de momentânea plenitude. Até porque não existe responsabilidade definida em ações coletivas de grande porte. Passada a embriaguez, o espólio é confuso. Desejavam a derrota do governo, mas repudiam a vitória Severina. Daí o deus-nos-acuda unânime nas hostes bem pensantes, horrorizadas com a barriga desnuda do novo presidente e com a conquista do poder pelo "baixo clero". E jamais se viu na história da República tanta ofensa pessoal contra um presidente de órgão de representação popular. Por extensão, odeiam-se os eleitores desse bando de anônimos e rapaces, como se não fosse a vitória de Severino Cavalcanti devida, não aos anônimos, mas aos colunáveis do PSDB, do PFL e das seções paulista e fluminense do PMDB. A habilidade do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é reverenciada e a desagradável conseqüência dela é debitada aos bolsões reacionários do Nordeste. A expectativa gerada pela unanimidade crítica é catastrófica. Espera-se, da nova presidência, legislação reacionária, carola, corporativa. O aumento dos subsídios dos deputados é o indicador mais cristalino da parada de sem-vergonhices que estariam por vir, tendo ficado elevadíssimo o custo de fazer aprovar qualquer coisa que não seja de interesse fisiológico. Será? Comentava com amiga minha que o Brasil é um país hegeliano. É perfeitamente possível que venha a ser através de um dos mais reacionários deputados do Legislativo, contrário a tudo que significa avanço, em costumes e em tecnologia, que a Câmara dos Deputados volte a adquirir parcelas da autonomia que não detêm desde a Constituinte de 1986. Uma outra face da rebelião comandada pelos, agora, desesperados alfacinhas.

País avança por meio de contradições

O credo do deputado Severino Cavalcanti é medieval, mas não está comprovado que a Câmara só aprova o que seu presidente quer. Aliás, como ficou claro, ela é capaz de rejeitar até o que o presidente da República deseja. Dificuldades de tramitação deste ou daquele projeto é manobra certamente possível, mas só na medida em que a maioria da Casa seja cúmplice de seu presidente. Quem paralisa transcurso de legislação é a maioria da Câmara, ou o presidente da República, com seus poderes excepcionais supostamente provisórios e sua recomendação de urgência, inclusive para certas bobagens que fabrica. A propósito, desde a presidência do atual governador Aécio Neves que se fala em recuperação do redundante poder legislativo do Legislativo. Nada foi feito. Tenho a impressão de que a reiterada declaração do novo presidente de que irá promover mudança na legislação sobre medidas provisórias é para valer. Só um deputado de partido sem grandes perspectivas de hegemonia política pode estar comprometido a sério com a recuperação de poder para o parlamento, sendo esta a única forma de conquistar poder para si próprio. Se tudo continuar como está, a responsabilidade, muito provavelmente, não será do baixo clero, mas, como antes, do cardinalício tucano-pefelista-petista-peemedebista. Outro quesito a ser avaliado, o da formulação e execução do Orçamento federal, é igualmente explosivo. Não são os cardeais os grandes interessados em mudanças, pois, como cardeais, sempre levam alguma vantagem, mas justamente o grupo que só em sonhos seria capaz de algo mais do que propor emendas a orçamentos elaborados por outros. O cumprimento dos legítimos contratos de emendas é vital para a periferia da elite parlamentar. O efeito colateral poderá vir a ser uma subversão democrática na alocação de bens no país por via do Orçamento federal. Por fim, à parte a produção de puros bens públicos, de usufruto universal, ou de bens distributivos, de consumo local, toda legislação no mundo inteiro atende a coletividades, a grupos de interesse. De estacionamento privativo a reserva de mercado industrial. A legislação corporativa, portanto, de que trata a retórica esnobe, não passa de um flatus vocis, um discurso vazio.