Título: Brasil acusa UE de violar regras de genéricos
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2009, Brasil, p. A4

O Brasil e a Índia protagonizaram ontem com a União Europeia (UE) um duro confronto sobre remédios genéricos, no que pode se tornar um dos contenciosos mais explosivos na Organização Mundial do Comércio (OMC). O Brasil acusou a UE de tentar minar as flexibilidades que dispõem os países em desenvolvimento para importar genéricos, que são mais baratos. Os europeus reagiram defendendo o direito de controlar medicamentos que passam por seu território para combater eventual comércio de remédios falsificados.

A briga tem como pano de fundo a retenção pela Holanda de uma carga de 570 quilos de Losartan Potassium, um ingrediente usado na produção de remédios para hipertensão arterial, exportado pela firma indiana Dr Reddy para a brasileira EMS. A carga foi retida por 36 dias e mandada de volta para a Índia.

Quando o caso foi levantado pela primeira vez na OMC e na Organização Mundial da Saúde (OMS), a UE retrucou que se tratava de "algo menor, sem consequências e valendo apenas 55 mil euros". A partir daí, o confronto estava programado entre países desenvolvidos e em desenvolvimento sobre um dos temas mais sensíveis na OMC, que é sobre o acesso a remédios baratos e respeito de patentes.

O embaixador brasileiro na OMC, Roberto Azevedo, comandou o ataque, vendo a retenção feita pela Holanda como parte de uma tentativa dos países desenvolvidos de aumentar exigências na área de propriedade intelectual através de outros órgãos, com a benção de organizações como a OMS e a Organização Mundial de Aduanas.

"Um dos benefícios do remédio genérico é precisamente o fato de que são menos custosos que os remédios com patentes", afirmou. "O comércio de genéricos é perfeitamente legal pelas regras internacionais de propriedade intelectual, como é também desejável de uma perspectiva de desenvolvimento e saúde pública."

Para o Brasil, o que as autoridades holandesas fizeram pode ter como consequência aumentar o custo dos genéricos, se as cargas tiverem de fazer outras rotas para evitar o mesmo incidente. Azevedo denunciou que foi uma "violação das disciplinas da OMC, afetando o espírito de tudo que os países em desenvolvimento negociaram no acordo de Trips sobre flexibilidades, permitindo que preocupações de saúde pública dos países em desenvolvimento sejam levados em conta e protegidos".

O Brasil e a Índia levantaram a suspeita de que a firma americana Merck, detentora da patente do remédio na Holanda, não pediu a retenção da carga e que a decisão teria sido tomada diretamente pelas autoridades locais. Segundo Azevedo, já houve mais de uma dezena de apreensões na Holanda em 2008 afetando cargas de remédios para sete países latino-americanos. O Egito, falando pelos países africanos, a Tanzânia pelos países mais pobres, e outros dez emergentes apoiaram o Brasil e a Índia.

A UE ficou isolada. Argumentou que não reteve e sim "suspendeu temporariamente" a carga para investigação, porque em um ano houve aumento de 51% no comércio de remédio falsificado, dos quais um terço originários da Índia. No total, os europeus dizem ter apreendido 34 milhões de remédios ilegais.

Para o representante europeu, Luc Devigne, "os outros países deveriam agradecer a UE por controlar os remédios e poupar vidas, sobretudo em países em desenvolvimento". O argumento caiu logo em seguida quando os europeus deixaram claro que a apreensão da carga destinada ao Brasil foi deflagrada pelo produtor americano Merck, detentor da patente na Holanda, ou seja, a base foi investigação por razões de patente, não de saúde pública.

Indagado pelo Valor sobre quem afinal apoiou a UE, diante da boa vontade em relação à saúde do resto do mundo, o europeu respondeu que só a Suíça, grande produtor de genéricos, ficou ao lado de Bruxelas. A UE tratou de combater os argumentos brasileiros, dizendo que a retenção da carga não ameaçou os pacientes brasileiros, porque 23 companhias produzem o mesmo remédio no Brasil. E insistiu que sua política de apoiar flexibilidade de patentes para atender questões de saúde pública permanece, assim como tem mecanismos internos para baixar preços de remédios.

A UE diz que tem o direito, com base nas regras da OMC, de continuar investigando cargas de remédios que passam por seu território. Caberá agora aos governos do Brasil, da Índia e de outros países em desenvolvimento decidir se levam o caso aos juízes na OMC. Bruxelas acha que não existe base legal para a reclamação.