Título: Perdido em meio à tragédia
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 18/01/2010, Mundo, p. 14

Abrigado em uma delegacia, o presidente haitiano, René Préval, é o retrato do desamparo que tomou conta do país depois do terremoto

Barack Obama tentou insistentemente por dois dias e duas noites, até que na sexta-feira de manhã conseguiu, finalmente, conversar por telefone com o presidente haitiano, René Préval. O vizinho poderoso transmitiu a solidariedade dos americanos ao país devastado pelo terremoto e ¿ mais importante, para Préval ¿ o apoio da Casa Branca ao governante sem-teto de Porto Príncipe. Prometeu também o apoio indispensável dos Estados Unidos à reconstrução do Haiti.

Préval encerrou o longo telefonema de meia hora agradecendo ¿do fundo do coração¿, em nome de seu povo, aos norte-americanos. Disse três vezes ¿obrigado¿. E não estava exagerando, nem falava apenas pelos traumatizados haitianos. Para o próprio presidente, o telefonema, a ajuda e o apoio de Obama chegaram em boa hora. Desde a noite em que a terra tremeu sob seus pés, René Préval foi visto algumas vezes como que perambulando entre as ruínas da capital ¿ não muito diferente dos cidadãos que o elegeram há pouco menos de quatro anos.

Se os chefes de Estado são investidos de poderes e símbolos que resumem a nação e a cidadania, nesses dias que sucedem a catástrofe, o presidente haitiano encarna o destino trágico de seu país. Sem telefone, sem gabinete, sem residência: o palácio, uma das construções mais vistosas de Porto Príncipe, ruiu como castelo de cartas ao impacto do tremor. Abrigado em uma delegacia da polícia, a barba desgrenhada, com as marcas de noites sem sono, Préval exibe na expressão do rosto a perplexidade, quase desamparo, de um governante reduzido praticamente à impotência.

Conversando com a agência Reuters, ele tira do bolso o Blackberry, inerte, sem sinal de recepção. ¿Não tenho casa, não tenho telefone: veja aqui o meu palácio¿, diz, com algo de auto-ironia e resignação, mostrando seu alojamento de campanha ¿ casa e gabinete, ao mesmo tempo. O presidente se abstém de fazer um balanço das vítimas e estragos causados pelo terremoto, admite que seu governo está disperso e paralisado. ¿Quase não há nenhum telefone funcionando. É difícil até para conversar ou encontrar com o primeiro-ministro¿, confessa. ¿Vamos ter de reconstruir tudo: o palácio desabou, o Parlamento está em ruínas, o Palácio da Justiça está no chão.¿

Sobrevivente Aos 66 anos, René Préval acumula uma trajetória política respeitável por qualquer medida. Formado na Europa, onde passou anos exilado durante a ditadura da dinastia Duvalier (entre 1957 e 1985), retornou ao país ligado aos círculos de esquerda próximos ao padre licenciado Jean-Bertrand Aristide. Em 1991, quando Aristide assumiu a presidência, Préval se elegeu primeiro-ministro ¿ apenas por oito meses, até que um golpe liderado pelo general Raoul Cédras obrigou ambos a partir novamente para o exílio. Em 1995, depois de Aristide ter sido reconduzido ao poder com apoio dos EUA, Préval sucedeu-o como presidente, eleito com nada menos que 88% dos votos. Em fevereiro de 2001, tornou-se o primeiro governante haitiano eleito democraticamente a entregar o poder para um sucessor igualmente eleito: Jean-Bertrand Aristide.

Préval retornou à cena em 2006, uma vez mais em um momento de instabilidade. Estava rompido com Aristide, que fora obrigado a deixar o palácio e o país, em 2004, fugindo de uma rebelião encabeçada por ex-militares ¿ o Exército fora dissolvido. Àquela altura, seu destino se entrelaçou ao da força de paz das Nações Unidas e do governo brasileiro, que aceitara o convite dos EUA e outras potências para chefiar o contingente. As eleições para a presidência e o Legislativo eram um marco no esforço internacional para reconstruir as instituições.

Foi nessa convergência de interesses que Préval e o Brasil amarraram suas trajetórias. Pelo retrospecto político e pela condição de favorito, ele era o nome ideal para dar ao país uma perspectiva de estabilidade ¿ tudo que o governo brasileiro poderia desejar. Faltaram-lhe, porém, alguns votos ¿ na ponta do lápis, 1,3% do total ¿ para chegar à maioria absoluta e ser eleito em primeiro turno. E foi um artifício contábil made in Brazil que propiciou o atalho: excluindo os votos em branco da conta dos votos válidos, o candidato preferido do Planalto e do Itamaraty somou 51,15% e foi proclamado presidente.

Corda bamba Os quatro anos de governo foram marcados pela parceria com o ¿grande irmão¿ latino-americano. Foi por iniciativa brasileira que o Haiti foi o primeiro país a ser incluído como beneficiário no acordo firmado entre os presidentes Lula e George W. Bush, em 2007, para promover os biocombustíveis na América Central e Caribe. Foi mais uma vez o Brasil, por meio de seu contingente na Minustah, quem socorreu o governo de Préval em 2008, quando a escassez de alimentos ameaçou transbordar em uma nova rebelião ¿ desta vez, de civis famintos. Aviões da FAB estabeleceram uma ponte aérea transportando mantimentos. No mesmo ano, como nos anos anteriores, os militares brasileiros estiveram na linha de frente do socorro às vítimas de furacões e enchentes.

A revolta dos famintos custou ao presidente a cabeça do primeiro-ministro Jacques-Édouard Aléxis, demitido por um voto de desconfiança do Senado. Depois de quatro meses de indefinição, Préval nomeou Michèle Pierre-Louis, segunda mulher a chefiar o governo haitiano, àquela altura dirigindo uma ONG voltada para a educação. Em novembro passado, o presidente sobrevivente trocou mais uma vez o comando do gabinete, novamente depois de um voto de desconfiança dos senadores. O primeiro-ministro com quem Préval tenta desde a noite de terça-feira manter contato, para articular a resposta à maior tragédia da história do país, é Jean-Max Bellerive, outro veterano do exílio e da resistência ao clã Duvalier.

Para saber mais Estado de calamidades

Ricardo Daehn

Enraizada por mais de dois séculos ¿ antes mesmo do abate da dominação francesa (firmada em 1697), a partir do levante de escravos no início do século 19 ¿, a calamidade parece jorrar no montanhoso e instável terreno do primeiro Estado independente da América Latina. Não bastasse a imaturidade política, que perpetuou sucessivos tiranos no poder, as intervenções climáticas se proliferaram e, em menos de dois anos, somaram três enchentes e quatro furacões para o país, descontada a mais recente tragédia.

Ironia do destino, há quem veja na emersão das mazelas (naquela que o jornal espanhol El País tachou como ¿a esquina de mendicância da América Latina¿) um fator de futuro alento. Explica-se: os planos de privatizações de estatais e de recursos naturais, outrora quase impostos pelo Banco Mundial, e que ignoravam necessidades sociais, ficam ainda mais distantes. Daí, há sobrevida e oportunidade para a reconstrução de bases para um povo ¿ sobremodo, sustentado por entidades assistenciais ¿ que amarga as consequências de um índice de analfabetismo capaz de superar 40% (na população acima de 15 anos, essa taxa alcança 45%).

Saber que 98% das florestas tropicais do local estão dizimadas, que uma dinastia autoritária estendida por 30 anos (até 1986) respondeu pela morte de 60 mil pessoas e que há, em média, um médico para cada grupo de seis mil moradores ajuda a compreender a defasagem haitiana, no posto de país mais necessitado das Américas. Sem programas de governo ¿ vale lembrar que o sacerdote (por duas vezes, presidente, até 2004) Jean-Bertrand Aristide formulou a máxima de erguer o povo à condição de ¿pobreza com dignidade¿ ¿, o país depende dos nove mil guardiões alinhados pela Missão de Estabilização das Nações Unidas (Minustah), mobilizada desde 2004. Foi sob a vigilância da Força de Paz que as eleições de 2006 levaram René Préval ao segundo mandato presidencial.

Desconfiados das grandes potências, os moradores da segunda maior ilha caribenha ¿ sobressaltados pela sucessiva instabilidade política e pela antiga condição de cobaia para a política norte-americana (numa ocupação colonial, fluente entre os anos de 1915 e 1934) ¿ já tiveram quase 60 dirigentes, num cenário em que metade dos presidentes foi deposta ou assassinada. A 150ª posição ocupada pelo Haiti, num ranking que classifica 177 países, em termos de desenvolvimento social, explica a interminável emigração de haitianos para a Venezuela e para a Colômbia, com vistas a Nova York ou Miami como destino final.

Atolados numa dívida externa colossal, que torna irrisórias as exportações de café e de azeite, e jogados à expectativa de vida de apenas 52 anos, os haitianos (num dominante contexto agrícola) tiveram agravado um painel já atolado em penúria: quase 70% da população ativa não encontra emprego formal; apenas 30% têm acesso à infraestrutura sanitária; enquanto uma, a cada cinco crianças com menos de cinco anos, sofre de desnutrição infantil. Os dados corroboram ¿a perversa corrupção¿, segundo salientou a ex-primeira-ministra Michèle Pierre Louis, infiltrada no país que se ressente da falta de representação partidária e que responde com apatia à dominação da elite empresarial e do influente grupo formado por mulatos (mestiços de africanos e europeus).

Sangrentas, desde a conspiração que culminou na morte do primeiro líder autônomo, o autoproclamado imperador (um ex-escravo analfabeto) Jean-Jacques Dessalines (em 1806), as trajetórias presidenciais praticamente nunca se completaram (exceto em oito ocasiões). Golpes, em cadeia; mandatos vitalícios; milícias que negociam a segurança; governos sustentados por decretos, e um Exército corrupto, além de um emaranhado de ditaduras ¿ a mais longeva, com François Duvalier, conhecido como Papa Doc, e a aterrorizante guarda pessoal dele, intitulada ¿bichos-papões¿ (tontons macautes) ¿ fomentaram uma segregação em alta escala.

A tudo isso, ainda foram somados fatos como o banimento de intelectuais, a limitação do acesso acadêmico (restrito a 1% da população) e a profusão de um sincretismo que mescla crenças africanas e preceitos cristãos (aglomerados no vodu), visto como eficiente suporte para o exercício de maior dominação. A contemporânea situação emergencial do Haiti parece enterrar, de vez, o passado que teve como bandeira o farto investimento estrangeiro que, no século 19, foi revertido em portos e ferrovias, a postos para acelerar a exploração comercial do país que amargou um intercâmbio comercial desfavorável. A atual solidariedade internacional ¿ pronta para avalizar o lema ¿A união faz a força¿, impresso na bandeira haitiana ¿ tem a chance de referendar o significado, em língua ameríndia, de ahiti: a ¿terra alta¿.