Título: Bird quer ação anticrise com foco social na AL
Autor: Brasil
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2009, Brasil, p. A4
O diretor de política econômica e programas de redução da pobreza na América Latina e no Caribe do Banco Mundial (Bird), Marcelo Giugale, recomenda que a resposta da região à crise global deve ser muito diferente dos países ricos. Ele acredita que os latino-americanos devem ser prudentes na adoção de políticas anticíclicas, para não perder conquistas recentes, como controle da inflação, contas públicas em ordem, e Bancos Centrais independentes. Leonardo Rodrigues/Valor
Marcelo Giugale: países da América Latina precisam de um estímulo social, não apenas fiscal e monetário, para superar a crise
"Temos que estimular sem destruir", disse o argentino Giugale ao Valor , depois de participar de um evento do Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, na sexta-feira. Ele está especialmente preocupado com os custos sociais "irreversíveis" da crise, como má nutrição, deserção escolar e fraco atendimento médico. Giugale pede a adoção de políticas sociais, e não apenas fiscais e monetárias. Ele defende que é mais barato e mais eficaz, já que os pobres não poupam.
Por conta da crise, o Bird projeta crescimento nulo para a América Latina em 2009. Nos cálculos do banco, a crise vai elevar em 6 milhões o número de pobres na região - 4 milhões que vão escorregar da classe média e mais 2 milhões que sairiam da pobreza em condições normais. Giugale se recusou a comentar a situação específica de países como o Brasil e sua terra natal, a Argentina. A seguir trechos da entrevista.
Valor: A crise atingiu a América Latina em um período de forte crescimento. A região está mais preparada para enfrentar os problemas?
Marcelo Giugale: A América Latina está melhor preparada do que nunca. O arcabouço macroeconômico que temos hoje é o melhor em décadas. Primeiro, quase todos os países tem superávit fiscal primário (antes do pagamento dos juros) e a maioria tem superávit fiscal geral. Conseguimos também que a administração responsável das contas públicas seja um ativo político. A população hoje pede que os líderes administrem bem as contas públicas, o que é inédito. Temos ainda boa condução monetária. Os Bancos Centrais são mais independentes, transparentes e competentes. Meia dúzia deles se comprometeu com metas de inflação, incluindo o Brasil, e estão cumprindo. E finalmente nossa posição patrimonial é a melhor em muitas décadas. A dívida pública como proporção do Produto Interno Bruto (PIB) caiu 10 pontos percentuais na maioria dos países na última década, o que é um presente para os nossos filhos. Os mercados perceberam isso. Temos sete países da região com grau de investimento.
Valor: Como isso nos ajuda a enfrentar a crise?
Giugale: Ajuda porque não temos um governo desesperado, buscando dinheiro. Também não temos bancos enfraquecidos como no passado, porque os BCs fizeram uma boa supervisão. Não temos um problema de dívida. Para 2009, quase todos os países latino-americanos já asseguraram seu financiamento. A crise vai nos impactar, vai reduzir o crescimento, mas nos encontra em uma posição melhor.
Valor: Qual é a estimativa do Banco Mundial para o crescimento da América Latina?
Giugale: Fazer previsões hoje é muito difícil, porque as notícias chegam a cada hora. Nas últimas três ou quatro semanas, aconteceram coisas que pareciam impensáveis: a possível nacionalização de bancos, quebra de seguradoras, o socorro a grandes indústrias como a automotiva. Com a informação que temos, o melhor que podemos estimar é que a região vai sofrer um freio em 2009. O crescimento vai ser zero. Em 2008, esteve entre 4,5% e 5%. Alguns países vão crescer um pouco, como Peru e Colômbia, e outros vão ter queda no PIB. O governo do México já anunciou que espera uma contração, porque o país está muito amarrado à economia dos Estados Unidos. Para nós, isso é difícil porque faz seis ou sete anos que crescemos muito rápido. Mas no contexto da crise é razoável.
Valor: O crescimento da América Latina foi muito baseado no intercâmbio com a China e na alta dos preços das commodities. A recuperação da região está ligada ao que ocorrer com a economia chinesa?
Giugale: Na verdade, temos três Américas Latinas. México, América Central e Caribe estão conectados aos Estados Unidos; a América do Sul, menos o Chile está ligada à China; e o Chile ao mundo todo e com capacidade própria de se recuperar, porque economizou e tinha um fundo de estabilização que está utilizando agora. Nos EUA, a chave para a recuperação é o setor financeiro. Na China, a dúvida é se os pacotes de estímulo serão suficientes para manter o crescimento acima de 5%. Se isso ocorrer, os preços das commodities vão parar de cair. Não é uma maravilha, mas é suficiente. O futuro da América Latina depende do que ocorrer nos EUA e na China.
Valor: A América Latina não poderia recuperar-se apenas com o estímulo de seu mercado interno?
Giugale: Temos poucos países que são suficientemente grandes para poder trabalhar somente com o mercado interno. O Brasil, talvez. Mas a maioria dos países é relativamente pequena e aberta. Por mais que incentivem a demanda agregada via pacotes fiscais ou monetários, parte do estímulo vai para as importações. Não vai favorecer tanto o crescimento do emprego, mas do consumo. A fórmula de auto-estimulação e proteção comercial não vai funcionar para a grande maioria dos países latino-americanos. Para nós, é crucial nos manter inseridos no mundo.
Valor: Nesse contexto, que receita os governos da América Latina devem seguir contra a crise?
Giugale: Precisam de um estímulo social, não apenas fiscal e monetário. Temos que ter mecanismos de transferência de recursos para os mais pobres, os que mais vão sofrer com a crise. O Banco Mundial calcula que a crise vai gerar 6 milhões de pobres adicionais na América Latina em 2009 - 4 milhões são pessoas que hoje estão na classe média e vão escorregar. Os outros 2 milhões são pessoas que teriam saído da pobreza se não tivesse ocorrido a crise. As experiências com as crises individuais dos países, como ocorreu no Brasil, Argentina, México, Nicarágua e Peru, mostram que muitos dos ganhos sociais desapareceram. A incidência de má nutrição sobe e provoca danos na capacidade cognitiva das crianças. Também vimos que outros ganhos importantes se reduzem, como manter as crianças nas escolas. Na crise, temos muita deserção, principalmente nas escolas secundárias. Se um adolescente deixa o colégio na crise, não volta mais e será uma vida truncada do ponto de vista econômico. E finalmente temos evidências de que o fluxo de medicina básica e preventiva se interrompe durante a crise e isso provoca um aumento na taxa de mortalidade.
Valor: Como é possível fazer uma política anticíclica social?
Giudale: Nos últimos dez anos, criamos mecanismos de transferência de renda aos pobres na América Latina. Não apenas as transferências condicionadas como o Bolsa Família, mas também alimentação nas escolas, programas de emprego temporário, programas para manter os jovens na escola. Desenvolvemos os mecanismos de identificação dos pobres na maioria dos países. Este é o momento de utilizar isso para injetar recursos. Os pobres têm uma propensão a consumir maior do que os ricos, porque têm necessidades insatisfeitas. Não têm poupança ou crédito. Se você dá US$ 1 a mais, gasta US$ 1 a mais. O impacto na demanda agregada de focalizar gastos públicos nos pobres é maior e mais rápido.
Valor: A região tem espaço fiscal para políticas anticíclicas?
Giudale: Se a pergunta é para políticas contracíclicas em geral, por exemplo, dobrar o investimento público, certamente não. Mas o estímulo social não custa muito. Na América Latina, gastamos entre 5% e 10% do PIB em subsídios. Um terço disso vai para os mais ricos. Temos muitos subsídios universais, como venda de eletricidade abaixo do custo ou universidades gratuitas. Os ricos ficam com um terço do total, o equivalente a triplicar os programas de transferência de renda. O Bolsa Família custa 0,5% do PIB no Brasil. Não é caro. Politicamente é difícil transformar benefícios gerais em localizados, mas essa é uma das oportunidade da crise. Como as necessidades são maiores e os recursos menores, o momento é propício, porque seguir subsidiando as classes ricas, quando as classes pobres sofrem, não é correto.
Valor: E as políticas anticiclícas tradicionais? Os governos da América Latina têm margem para isso?
Giudale: A resposta de política pública na América Latina tem que ser muito diferente do que vemos nos países ricos. Primeiro, é preciso preservar os ganhos sociais e evitar os custos irreversíveis. Temos que focar nisso, porque não temos seguro contra o desemprego e tampouco um sistema de aposentadoria que cubra a maioria. A maior parte da população está no mercado informal. Segundo, temos que estimular sem destruir. Não queremos acabar com os balanços fiscais que custamos tanto para alcançar, nem que obriguem o Banco Central a emitir dinheiro para pagar as contas públicas ou financiar o setor privado. Os EUA podem fazê-lo porque o mercado quer dólares, mas as moedas locais não têm a mesma demanda. Finalmente também não queremos nos endividar novamente. O estímulo tem que ser feito com cuidado e temos tempo para isso, porque a crise não nos atingiu tanto quanto os países ricos. Outro ponto que nos faz diferentes dos outros é que entramos na crise com uma série de reformas pendentes. E agora podemos usar a turbulência para acelerar as reformas. Este seria um bom momento, por exemplo, para tirar o investimento público da administração do caixa estatal. Nos anos 90, preocupados com a inflação, os países latino-americanos retiraram dos governos a capacidade de emitir moeda para se financiar, passaram essa responsabilidade para os BCs e colocaram metas de inflação. Agora que as pessoas perceberam que o investimento público é a maneira de reativar o crescimento vão querer tirar o investimento da administração do caixa para que não seja recortado ao fechar os orçamentos. Teríamos também meta de crescimento e não apenas de inflação e isso teria benefícios enormes. Se o objetivo do investimento público é somente crescer, não está ligado a recompensas políticas, compensações sociais ou regionais, você coloca os dólares onde gera mais investimento privado. O investimento deixaria de validar as ineficiências dos gastos correntes. Estamos muito longe disso, mas acredito a pressão da crise vai levar a América Latina a repensar o papel do investimento público.