Título: Expurgos mostram novos desafios do regime cubano
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Fonte: Valor Econômico, 10/03/2009, Opinião, p. A12

O governo cubano vive em estado de orfandade desde que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas desmoronou, há uma década. Guardadas as particularidades políticas e sociais tropicais, o regime é uma cópia adaptada das ditaduras stalinistas que dominaram o Leste Europeu e que apodreceram com o tempo e caíram sem opor grande resistência, em rápida sucessão. Não há liberdade de imprensa nem de reunião, os dissidentes são perseguidos e encarcerados e a única forma de participação política e ascensão social na ilha é por meio do partido único, o Partido Comunista Cubano. Sem os US$ 2 bilhões anuais de ajuda soviética e com o estrito embargo americano, Cuba trocou de dependência, mas seus problemas só aumentaram. Como toda ditadura stalinista, a sucessão no poder é algo traumático e tem de ser conduzida com as doses conhecidas de segredo e repressão. As coisas se tornam mais complicadas ainda quando o líder incontestável tem 77 anos.

O último episódio da transição do poder personalista de Fidel Castro a seu irmão Raúl ocorreu com uma ampla e inesperada reforma ministerial, na qual foram defenestrados 10 ministros, entre eles dois da velha guarda castrista, homens de confiança de Fidel e os mais óbvios na linha de sucessão de Raúl. Felipe Pérez Roque, ex-secretário de Fidel e ministro das Relações Exteriores de Cuba por 10 anos, e Carlos Lage, secretário de gabinete, um reformador econômico que salvou Cuba da crise provocada pelo fim da assistência financeira soviética, cumpriram um ritual que parecia ter sido enterrado com o regime da URSS: as confissões públicas de culpa. A questão maior não foi a retomada de um anacronismo de trágicas memórias, mas o sentido oculto do expurgo.

Fidel Castro, em artigo para a imprensa oficial, disse que seus ex-auxiliares agora tiveram conduta "indigna", após provar do "mel do poder". Isso é uma pista de que a sucessão de Fidel por Raúl, como até as pedras sabem, é apenas provisória - a verdadeira sucessão será a dos irmãos Castro - e que manobras de bastidores para consolidar posições para um governo pós-Raúl estavam em andamento. Roque e Lage tinham imagens aparentemente opostas - um linha dura, o outro reformador - o que amplia o mistério. Ele poderia ser esclarecido pelas escolhas subsequentes de Raúl para substituí-los, mas o líder cubano cercou-se principalmente de militares idosos e obscuros.

Diante dos desafios que tem pela frente, Raúl quer garantir a execução de suas estratégias, o que envolve, como ocorreu com frequência nos regimes stalinistas, expurgos de facções, ainda que antagônicas entre si. Um conservador como Roque é um empecilho à flexibilidade necessária para as reformas que Raúl já iniciou e tem de prosseguir. Um reformador como Lage pode ter desejado ir mais longe do que as até agora superficiais mudanças ensaiadas. A ascensão de membros do exército e do aparato de segurança denota o desejo de unanimidade a todo o custo e a permanência de um sistema em avançado estado de obsolescência.

Em Cuba, os problemas internos espelham também desafios externos. Com a chegada de Barack Obama ao poder no arquirrival EUA, e seus acenos para uma mudança nas relações com Cuba, Raúl Castro terá de se ver diante de algo inédito nos 50 anos de governo castrista - uma proposta de paz e entendimentos. É algo absolutamente encorajador, mas igualmente perigoso para os burocratas cubanos, que mantêm grande parte de sua popularidade graças às memórias da tentativa de invasão de Cuba, ao odioso embargo econômico e à miopia da política de antagonismo dos presidentes americanos em relação à ilha. Dessa forma, um "fechamento" maior do regime, revelado pelos expurgos, seria uma preparação para o diálogo com os EUA e não sua negação. Uma distensão acelerada, com a retirada do embargo econômico, colocaria em sério risco a burocracia cubana, embora lhe desse as chances de uma correção proveitosa de rumos.

A distensão poderia dar a Raúl as chances de realizar uma mudança "à chinesa", com reformas econômicas que livrassem Cuba da dependência que tem de Venezuela e China, responsáveis por quase 40% de tudo que o país exporta e importa. Os primeiros lances de Raúl não descartam essa rota, mas não a tornam mais factível. Novos ventos sopram sobre a ilha e mais mudanças estão a caminho.