Título: Freio no desconto
Autor: Couto, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 11/02/2010, Brasil, p. 8

Conselho Federal de Medicina proíbe participação dos médicos na promoção de cupons que reduzem preço de medicamentos em até 50%. Sindicato da Indústria Farmacêutica de São Paulo critica decisão e alega que não houve debate

O médico Rodrigo Siqueira, com o colega de profissão Gustavo Bettarello: ¿A ideia do desconto pode ser boa, mas a conduta pode criar um vínculo¿

Na tentativa de evitar a influência dos cerca de 340 mil médicos brasileiros no processo de escolha dos medicamentos e no fornecimentos de dados sigilosos dos pacientes, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução nº 1.939, que proíbe a participação dos profissionais na divulgação de promoções relacionadas a cupons e cartões de desconto para a compra de remédios. A norma do conselho, publicada na terça-feira no Diário Oficial da União (DOU), foi baseada no argumento comercial. ¿A participação dos médicos nessas promoções deixa o sigilo do paciente vulnerável. Isso porque é preciso fornecer dados do indivíduo a representantes da indústria farmacêutica¿, explica o secretário-geral do CFM, Henrique Batista e Silva, autor da medida, aprovada em janeiro.

Contrário ao posicionamento do CFM, o vice-presidente executivo do Sindicato da Indústria Farmacêutica do Estado de São Paulo (Sindusfarma), Nelson Mussolini, afirma que as fabricantes de medicamentos entendem que os planos de adesão são fundamentais para o tratamento de doenças crônicas e a cura dos pacientes. ¿Não são apenas cupons com descontos. Esses programas agregam uma série de serviços de suporte de interesse dos pacientes, sobretudo dos portadores de diabetes, de doenças do coração e de neoplasias. Os cartões preservam a liberdade para o profissional prescrever o medicamento que achar mais viável¿, observa.

Na opinião de Mussolini, a indústria tem certeza que a classe médica não se deixa influenciar por esses instrumentos de descontos. ¿O profissional recebe influência de estudos científicos e não de brindes. Em 32 anos de profissão, nunca vi um médico ser pressionado pela indústria farmacêutica¿, acrescenta. Para ele, faltou debate sobre o tema. ¿Nós (Sindusfarma) e outros setores dos fabricantes de medicamentos vamos procurar o CFM para negociar uma alternativa para a decisão¿, informou.

Justiça social

Além de evitar o estreitamento de laços dos médicos com a indústria, a resolução do CFM, segundo Henrique Batista, busca a justiça social. ¿Quando um médico se associa a uma indústria para buscar desconto para uma determinada parcela de pacientes, está automaticamente prejudicando os outros que não foram contemplados com o benefício¿, diz. ¿E justamente esses que não foram beneficiados com os remédios mais baratos ainda acabam pagando pelos medicamentos oferecidos a preços inferiores a uma pequena parte dos consumidores. O preço deve baixar para todos¿, completa. ¿O CFM não pode permitir que o médico tenha qualquer relação com a indústria que vise lucro¿, frisa. Caso o profissional insista em manter essa prática, ele pode ser punido com advertência, suspensão ou até a cassação do registro.

Doutor em hematologia pela Universidade de São Paulo (USP), o superintendente do Centro Especializado em Oncologia e Hematologia (Ceon), Rodrigo Siqueira confirma o assédio da indústria farmacêutica na oferta dos cupons com descontos. ¿Nunca aceitamos esse tipo de prática. É uma norma interna do estabelecimento. A ideia do desconto pode ser boa, mas a conduta pode criar um vínculo entre o médico e a indústria¿, ressalta. ¿O mais preocupante é que, para ter acesso ao desconto, o médico deve fornecer informações sobre o paciente. Por esse motivo, concordo plenamente com a resolução do CFM.¿

A opinião é a mesma do hematologista Gustavo Bettarello, também do Ceon. ¿O médico não pode orientar o paciente a comprar determinada marca de remédio. O desconto tem que partir da indústria, e não do profissional. É antiético e soa mal¿, afirma. ¿Acho estranho esses cupons que oferecem preços muito mais baixos de medicamentos. Os grandes descontos mostram que o preço final ao consumidor pode ser até três vezes maior do que o oferecido por esses cartões.¿

Os cupons e cartões de desconto oferecidos pela indústria aos médicos podem reduzir em até 50% o preço final de um remédio. Para ter acesso ao benefício, o paciente e/ou o médico deve fornecer informações sobre a doença e o tipo de tratamento. É o caso da advogada Fátima Pereira, 42 anos. Hipertensa, ela usa os cartões com desconto há dois anos, desde que veio morar em Brasília. ¿Não estava sabendo que eles acabaram com isso. Discordo totalmente dessa resolução do Conselho Federal de Medicina. Tinha descontos que variavam de 40% a 50% do valor do remédio que preciso tomar para manter a pressão normal. É um absurdo¿, afirma. A advogada admite que precisou fornecer informações sobre seu tratamento no site de uma grande indústria. ¿Não vejo nada demais nesse procedimento. Se eles estão oferecendo desconto, é justo que solicitem dados das pessoas que estão sendo beneficiadas¿, opina.