Título: O totem da inflação
Autor: Carlos de Assis , José
Fonte: Valor Econômico, 13/03/2009, Opinião, p. A14

O modelo dá a ilusão de que existe uma política monetária, neutra politicamente, conduzida por um BC independente

Como se constrói um deus na África? Toma-se um pedaço de madeira, dá-se-lhe uma forma e, por meio de encantamentos, um conjunto de atributos sobre-humanos que se prestam à veneração. É também assim com o modelo de metas de inflação no Brasil e em outros países que se submeteram à metafísica da economia. Trata-se de um totem civilizado, embrulhado numa matemática difusa que esconde a realidade econômica no lugar de esclarecê-la e orientá-la.

Como na África, onde os pedidos aos deuses, se forem razoáveis, costumam ser atendidos - se não fossem, a crença perderia sua base -, o totem da inflação no Brasil parece ter funcionado: a inflação baixou de seu pico em 2003, e desde então se comportou dentro da meta. São duas as questões que isso levanta: 1) teria a inflação caído mesmo sem o modelo?; 2) teria o modelo imposto custos exagerados à economia, sobretudo quanto a crescimento econômico e emprego?

Um rápido lance de olhos sobre o processo econômico brasileiro de 2003 para cá não deixa qualquer dúvida sobre essas duas questões. Numa situação em que os preços e as quantidades exportadas de commodities (50% das vendas externas) dispararam, era inevitável a valorização do real depois da maxi de 98/99; com o câmbio se valorizando, importações mais baratas, assim como os preços internos das commodities exportadas, teriam de levar a uma queda inexorável da inflação. Isso é da economia elementar. Mas estudos acadêmicos rigorosos têm demonstrado também que o modelo de metas não funciona nem aqui, nem no mundo.

Sem o modelo de metas, cujos feiticeiros no Banco Central decidiram que o Brasil só poderia crescer a taxas medíocres por causa de uma fantasmagórica insuficiência de um produto potencial apurado arbitrariamente, teríamos tido uma performance chinesa nos últimos cinco anos, em termos de crescimento do PIB, dado que não havia restrição externa. Tivemos crescimento, sim, mas muito abaixo da média dos emergentes e abaixo da média mundial. Para um país com uma das maiores taxas de desemprego do mundo, é pouco animador.

É verdade que a taxa de desemprego caiu, também ela, a partir de um patamar extremamente elevado do início dos anos 2000. E é verdade que, até meados do ano passado, quando a crise mundial se explicitou, essa queda se acelerou, passando de 9,6% em meados de 2007 para 7,6% em outubro de 2008. Por trás desse ritmo animador, contudo, estava uma economia crescendo a despeito da política monetária, a despeito da política fiscal e, naturalmente, a despeito do modelo de metas, puxada sobretudo pelas exportações.

Políticas anti-inflacionárias em momentos de crise nunca são triviais. Na virada dos 70 para os 80, os Estados Unidos enfrentaram uma pesada onda inflacionária que levou o recém-empossado presidente do Fed, Paul Volcker, a romper com os métodos operacionais antigos da política monetária e a recorrer à política de controle quantitativo de crédito sugerida havia décadas por Milton Friedman. As taxas de juros foram para a lua e o país entrou numa profunda recessão até 84.

Volcker deu marcha a ré, para salvar a economia e o emprego. O monetarismo foi para a lata do lixo, como ineficiente. As taxas de juros voltaram progressivamente para níveis normais. O que dá ao nosso modelo de metas caráter totêmico é que ele pretende ser eterno. E se ele funcionou, funcionou porque, avaliado em seus próprios termos, não se pode esperar dele muito mais que a conformidade com uma taxa de inflação que não resulta dele, mas de circunstâncias externas.

De um ponto de vista técnico, o modelo de metas não passa de um conjunto arbitrário de fórmulas tautológicas, ajustadas por parâmetros arbitrários, e combinadas para produzir resultados até a segunda casa decimal. Pura mistificação. O coração do sistema é a estimativa do produto potencial, e as relações entre o produto potencial e a inflação, condicionadas ao poder metafísico da taxa de juros de ajustá-las. É como se a moeda, e só ela, fosse a alavanca da economia, como no monetarismo ortodoxo.

Outro parâmetro essencial ao modelo são as expectativas inflacionárias do próprio mercado, captadas na pesquisa Focus entre agentes econômicos que não formam preços, isto é, os agentes financeiros. É inacreditável que um modelo que se pretende determinista - pois dele resulta a taxa de juros que será arbitrada pelo Banco Central - se apoie num parâmetro tão frágil, a que se dá crédito porque oriundo de um conjunto de pessoas diretamente interessadas numa taxa de juros alta. Um cardume de arenques, dizia Maeterlink, não é mais inteligente que um arenque isolado!

A absorção do modelo de metas em pouco mais de uma dezena de países - entre os quais não se incluem nem os Estados Unidos, nem a União Europeia, nem o Japão, nem a China, nem a Índia, e do qual se afastou a Inglaterra - se deu num momento de grande instabilidade inflacionária no mundo, sendo uma espécie de receita do desespero. Aqui também. Acabávamos de sair do desastre provocado por Pedro Malan e Gustavo Franco na condução da política monetária, o que sugeria agarrar-se até numa palha para não se afogar.

Pelo que se viu depois, o modelo funcionou, exceto quanto mais dele se precisava, ou seja, no período de alta instabilidade de sucessão presidencial, quando, a despeito dele, a inflação ameaçou sair do controle. Depois, as circunstâncias externas favoreceram a estabilização. Agora, em plena crise, seria o momento de o governo fazer com o modelo de metas o que Paul Volcker fez com o monetarismo de Friedman: jogá-lo no lixo, por falta de funcionalidade na crise.

É que se o modelo matemático se revelou incapaz de captar o imperativo da redução rápida da taxa de juros num momento em que o comércio exterior colapsa, o produto industrial naufraga, o desemprego dispara e alguns setores produtivos dão claros sinais de deflação, está claro sua contradição com tudo o que se conhece razoavelmente como política monetária. Se quem dita a taxa de juros é uma fórmula, não a habilidade de um presidente do BC, é indiferente colocar lá um Henrique Meirelles ou um cabo de vassoura.

Será difícil nos livrarmos do modelo de metas, porque uma das artes do charlatanismo é esconder o real. É da natureza humana viver na instabilidade e procurar a estabilidade. O modelo dá a ilusão de que existe uma política monetária, neutra politicamente, conduzida por um banco central independente, que garante a estabilidade de preços contra o pano de fundo dos inexoráveis ciclos capitalistas. Não considera que a moeda e o crédito podem ter uma função independente fora do ciclo, ajudando a normalizá-lo. Enquanto isso perdurar, será uma ilusão esperar da política monetária brasileira qualquer contribuição efetiva à superação da crise.