Título: Repensando o direcionamento do crédito
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2005, Opinião, p. A11

Ainda que às vezes se sugira o oposto, as reformas no Brasil não foram feitas de supetão, mas na esteira de um longo debate. A privatização, por exemplo, começou a ser discutida nos anos 1970, no bojo da Campanha contra a Estatização. Em 1981 se iniciou a venda de pequenas estatais, em 1990 se lançou o Programa Nacional de Desestatização, mas só na segunda metade da década passada a privatização atingiu a dimensão pela qual ela é hoje lembrada. O debate nesse período ajudou a sociedade a entender os prós e contras da privatização. O mesmo ocorreu com a abertura comercial e as reformas nas áreas regulatória, previdenciária, tributária e do Judiciário. As reformas não foram, portanto, fruto de um surto de neoliberalismo, mas respostas pensadas a mudanças no ambiente externo e doméstico. A tecnologia avançou, o mundo ficou mais integrado, e o Brasil redemocratizou-se e desenvolveu-se, passando a contar com um setor privado muito mais pujante. Com isso, algumas políticas que tinham sido úteis no passado deixaram de sê-lo no presente. Será esse o caso dos subsídios concedidos através do direcionamento do crédito? Talvez. O crédito direcionado corresponde a 37% dos empréstimos do Sistema Financeiro Nacional. Não é pouca coisa. Ele assume duas formas: alocações obrigatórias de crédito em condições favorecidas para determinados setores e operações subsidiadas realizadas por bancos públicos com setores e empresas selecionadas. Na sua origem, era mais um instrumento de uma política econômica em que o investimento privado era coordenado pelo Estado e orientado para substituir importações e "ocupar espaços vazios" na matriz industrial. Seu uso era conjugado com elevadas barreiras às importações e controles sobre a oferta, através do Conselho de Desenvolvimento Industrial e vários outros conselhos, que determinavam em que produtos, volumes e regiões as empresas privadas deveriam investir. Nessa época, o Conselho Interministerial de Preços, e não o Banco Central, se responsabilizava por controlar a inflação. Era um modelo para uma economia fechada, sem espaço para a competição, administrado por um governo que, de um lado, gerava elevada poupança pública, e, de outro, distribuía subsídios sem precisar dar explicações à sociedade.

A poupança compulsória utilizada pelos bancos públicos é mais um tributo que distorce os preços e gera informalidade

Como as coisas mudaram. Mas terão elas mudado o suficiente para tornar o direcionamento do crédito disfuncional? A resposta que um número crescente de economistas tem dado a essa questão é que sim. Em artigos e entrevistas recentes, Claudio Haddad, Edward Amadeo, Eliana Cardoso, Joaquim Levy e Persio Arida, entre outros, mostraram que essa política pode ter custos elevados e benefícios incertos: a) a eficiência econômica é prejudicada para se obter os recursos que financiam esses subsídios. A poupança compulsória utilizada pelos bancos públicos é mais um tributo que distorce os preços e gera informalidade. Além disso, para tirar recursos do setor privado com uma mão e devolver (para outros) com a outra, é necessário pagar pela máquina arrecadadora e pelas instituições que distribuem os subsídios. Propõe-se que esse segundo custo pode ser reduzido leiloando-se o direito de distribuir esses subsídios, mantidos os critérios atuais de alocação; b) o crédito direcionado é pouco sensível à política monetária, já que a ele se aplicam restrições quantitativas e/ou uma taxa de juros que não varia com a Selic. Nada impede, assim, que ele se expanda, enquanto a política monetária fica mais contracionista. Quando isso ocorre, é necessário aumento maior da Selic para gerar o mesmo efeito sobre a demanda agregada, penalizando aqueles sem acesso ao crédito direcionado. Destes, o Tesouro Nacional é de longe o principal prejudicado. O resultado é uma deterioração das contas públicas, elevando o risco-país, e uma maior redução do investimento e do emprego nas empresas não subsidiadas; 3) há um processo de seleção adversa que prejudica o desenvolvimento dos mercados de crédito e capitais. Os bancos públicos selecionam as melhores empresas para receber seus créditos (felizmente), e sendo capazes de emprestar com subsídios batem a concorrência sem dificuldade. Ainda que bom para a saúde dessas instituições, o resultado adverso é que sobram para os demais bancos e o mercado de capitais as piores empresas e projetos. O mercado livre é obrigado a operar com menor escala e mais risco. Além disso, fica difícil separar o estímulo ao investimento de meras transferências de renda, já que é de se esperar que bons projetos de boas empresas sejam viáveis mesmo sem subsídios; 4) o mercado, como se sabe, não é perfeito, e é possível que a intervenção estatal melhore as coisas. Mas esta tem custos e nem sempre atinge os resultados esperados. Por isso é preciso medir os seus custos e resultados. Será o benefício gerado por esses subsídios maior do que as perdas causadas pelo direcionamento do crédito? Ninguém sabe. Qual o seu impacto líquido sobre o emprego e o investimento? Ninguém sabe também. Não há explicitação dos objetivos finais - em oposição a metas orçamentárias - que se pretendem alcançar com os subsídios, nem medições posteriores do que se conseguiu fazer, contrariando princípio defendido pelo Ministério da Fazenda de que "todo programa ou política deve possuir metas e objetivos transparentes, que permitam a permanente avaliação de seu desempenho relativo (...) e deve ser objeto de uma avaliação ex-ante dos impactos esperados, além da avaliação ex-post de desempenho". Até aqui, o debate sobre o crédito com recursos direcionados tem sido quase unilateral. A tônica dos que não querem reformar esse instrumento tem sido de tentar desqualificar o debate, sem se contrapor aos argumentos. Três razões têm motivado essa reação: interesse, pois quem recebe os subsídios não quer saber desse debate; confusão, de quem mistura críticas aos subsídios com um ataque às instituições que os distribuem; e ideologia, especialmente dos defensores do Estado máximo, que se tornaram mais influentes nos dois últimos anos. Uma pena, pois a falta de debate prejudica a compreensão da questão e a identificação de alternativas.