Título: Brasil vence EUA na OMC e põe subsídios em xeque
Autor: Assis Moreira, Mauro Zanatta e Tatiana Bautzer
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2005, Especial, p. A12

A Organização Mundial do Comércio (OMC) confirmou nesta quinta-feira a vitória do Brasil contra os subsídios concedidos pelos Estados Unidos à produção de algodão, em uma decisão histórica, contundente e com importantes implicações para outros programas de ajuda desenvolvidos tanto pelos EUA quanto pela União Européia e também considerados ilegais à luz das regras da OMC. Nas disputas comerciais na área agrícola, este pode ser considerado o triunfo mais importante obtido por um país em desenvolvimento. A decisão abre caminho para novas disputas contra subsídios a commodities como soja, arroz, trigo e milho. A expectativa de países em desenvolvimento é que a vitória brasileira também possa impulsionar as negociações da Rodada de Doha para eliminação de subsídios a produção e exportação nos países ricos. "A estratégia negociadora do Brasil não pode ignorar mais a decisão dos dois painéis na OMC [do algodão e do açúcar, este contra os subsídios da UE ao açúcar] e precisa afrontar os subsídios como um todo", conclamou Pedro de Camargo Neto, maior incentivador da abertura do processo do algodão, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso.

A OMC rejeitou todas as 19 apelações feitas pelos EUA, que contestava a vitória inicial do Brasil, e marcou o fim da linha para Washington no sistema de solução de controvérsias. "O resultado não podia ser melhor", comemorou Roberto Azevedo, chefe da divisão de contenciosos do Itamaraty. O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, disse que é um "marco" nas negociações internacionais. "Fica claro que a OMC não vai mais admitir práticas comerciais predatórias". Para a secretária de Relações Internacionais do ministério, Elizabete Seródio, que acompanhou as discussões em Genebra, houve "competência e coragem" do governo ao encaminhar uma questão "complexa e difícil". Com a decisão, teoricamente Washington deveria eliminar os subsídios, créditos e garantias a exportação até 1º de julho próximo. Quanto aos subsídios domésticos condenados, o prazo máximo para a retirada é de 15 meses, pelos acordos da OMC, mas pode ser negociado com o Brasil. Na prática, porém, essa disputa vai durar muito tempo, talvez além da Rodada de Doha. Sempre que são derrotados, os EUA demoram anos para implementar as decisões da OMC - isso quando implementam. "Estamos estudando o relatório da OMC e algumas partes da decisão são decepcionantes. Vamos trabalhar com o Congresso e com a comunidade agrícola para definir os próximos passos", disse o porta-voz do Departamento de Comércio dos EUA (USTR), Richard Mills. Ele disse que Washington tem interesse "em resultados, não em litígio na OMC". O discurso americano é o mesmo desde o início da contenda, quando a frase "ganha mas não leva" exprimia a opinião dos executivos da área de comércio do governo americano. Recentemente, em um seminário em Washington sobre Doha, um executivo do USTR afirmou que a implantação da decisão da condenação do subsídio ao algodão ocorreria só após o fim das negociações na OMC. O argumento é que seria feita uma mudança mais abrangente na legislação de subsídio agrícola do país ("Farm Bill") incluindo diversas culturas. De qualquer forma, a decisão desta quinta-feira representou a primeira vez que um painel da OMC condenou um programa de subsídios de um país membro por causar "sérios prejuízos" aos interesses comerciais de outro membro. "A decisão muda a conformação do acordo agrícola atual, porque alguns pontos estavam em zona cinzenta; agora está tudo preto no branco", reagiu uma alta fonte da OMC. "O grande resultado é que há inclusive novas fundamentações que justificam o combate aos subsídios distorcivos". Espécie de corte suprema do comércio internacional, o Órgão de Apelação passou por abalos, com "opinião separada" e foram necessárias 300 páginas para decidir o caso presidido pela americana Merit Janow. Os juízes confirmaram que Washington deu um montante tal de subsídios a seus produtores de algodão que derrubou os preços internacionais do produto. Os programas de apoio americanos condenados deram em média US$ 3,3 bilhões por ano entre 1999 e 2002. Produtores brasileiros dizem ter perdido US$ 480 milhões por ano por causa das subvenções dos EUA. Em uma importante decisão com possíveis implicações também para a União Européia, os juízes confirmaram que os programas de apoio agrícola com exigências de "conteúdo local" constituem subsídios proibidos e devem ser abolidos. Analistas dizem que isso afeta diretamente programas europeus para lácteos e mesmo para o açúcar. Mas, para serem condenados, é necessária a abertura de uma queixa na OMC. Os próprios EUA são duramente afetados com a condenação do programa conhecido como "Step 2", que compensa os fabricantes americanos pela compra e uso de algodão local mais caro. A decisão é particularmente dura tambem para uma série de programas de garantia de preços americanos. O Órgão de Apelação constatou que os pagamentos diretos a produtores de algodão americanos não são subsídios autorizados ("caixa verde"), como os EUA alegavam, e romperam compromissos assumidos na OMC. Ou seja, esses pagamentos não preenchem os critérios de pouco ou nenhum impacto no comércio. Mas as subvenções ao algodão não eram "caixa verde" porque os pagamentos americanos estabelecem limitações ao reduzir ajuda para produtores de frutas, vegetais e arroz. Só para o algodão, os pagamentos diretos alcançam US$ 429 milhões na safra 2004/05. A UE examina com atenção esse ponto, tanto mais que a recente reforma de sua Política Agrícola Comum (PAC) está baseada na idéia de converter alguns subsídios em "caixa verde", autorizados e portanto livres de contestação por outros países. O grande temor dos brasileiros era como o Órgão de Apelação iria avaliar a questão de supressão de preços e o prejuízo causado por subsídios. Mas os juízes mantiveram a análise geral do painel anterior. Eles estabeleceram que, se um subsídio superar o teto que um país se comprometeu a respeitar pelo Acordo Agrícola da OMC, passam a valer as regras do Acordo de Subsídios e Medidas compensatórias. E estas são mais rígidas que o Acordo Agrícola. Para Scott Andersen, principal advogado do Brasil na disputa do algodão, a decisão deveria acelerar a eliminação de pelo menos dois programas americanos ("marketing loan" e "counter-cyclical payments"). "Isso não apenas beneficia os produtores dos países em desenvolvimento, mas os contribuintes americanos que pagam bilhões de dólares para uma parte relativamente pequena de produtores de algodão". Segundo ele, de cada dólar que os produtores ganham com a venda de algodão, os contribuintes americanos pagam a eles outro dólar.