Título: Alvo agora são as ex-estatais
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2005, Finanças, p. C10

Depois de conseguir impor aos credores de sua dívida externa a renegociação mais dura da história, a Argentina está tentando fazer com que as empresas de serviços públicos privatizadas que tiveram perdas com a desvalorização e o congelamento de tarifas não recebam qualquer compensação. Superado o default, a questão das empresas privatizadas deve ser o principal fator de pressão contra o país nas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI), já que as matrizes das companhias estão em países com peso no Fundo, como França, EUA, Alemanha e Espanha. Na terça-feira, durante o discurso ao Congresso em que anunciou a saída do default, o presidente Néstor Kirchner já deixou claro que as empresas serão seu próximo alvo. Disse que na renegociação de contratos das privatizadas, pendente desde a desvalorização de janeiro de 2002, defenderá "com unhas e dentes os interesses dos consumidores argentinos". Também afirmou que o processo será levado a cabo de acordo com as leis do país, rejeitando a participação de tribunais internacionais na questão. Atualmente, a Argentina enfrenta 35 processos em um tribunal do Banco Mundial em que companhias pedem ressarcimento de cerca de US$ 20 bilhões por perdas ocasionadas por ações do Estado, como a desvalorização e o congelamento de tarifas. "Quando até os economistas mais ligados ao oficialismo assinalavam um processo rápido de normalização com as empresas privatizadas de serviços públicos, o presidente ordenou a barulheira que indica o início de outra guerra, concluída a que travava com os credores", escreveu ontem o colunista Joaquín Morales Solá, do jornal "La Nación". Depois das declarações do presidente, um deputado governista disse estar preparando um projeto para que o governo possa não cumprir uma determinação de um tribunal internacional caso considere que a decisão tenha sido "arbitrária" e "com falta de transparência". Com o endurecimento em relação às empresas privatizadas, analistas já prevêem que as negociações de um novo acordo entre o país e o FMI podem ser longas. Uma das possibilidades é que o governo opte por pagar os vencimentos com organismos multilaterais até concluir a renegociação, para evitar ser pressionado. O cenário também se complica considerando-se a necessidade de o país cumprir metas monetárias restritas, no momento em que o dólar vive um período de debilidade e o governo se esforça em manter a sua cotação ao redor de 3 pesos, eixo do modelo econômico de debilitar a moeda para elevar a competitividade das exportações. O BC argentino vem comprando dólares para sustentar a cotação, mas há risco de que a margem para injetar liquidez na economia sem gerar inflação esteja se esgotando. Em fevereiro, a inflação atingiu 1%, acima da esperada, e em janeiro a taxa havia sido de 1,5%. Segundo o consultor Miguel Angel Broda, o governo pode lançar mão de instrumentos para realizar os pagamentos ao FMI neste ano, embora as condições financeiras do país sejam muito menos folgadas do que no ano passado. Sem acordo, o Estado teria de pagar vencimentos de US$ 3,094 bilhões, fazendo com que o resultado financeiro deste ano passe de um superávit de US$ 1,453 bilhão para um déficit de quase US$ 2 bilhões. O financiamento dessa diferença pode ser feito com a rolagem de dívida interna, uso das reservas do BC ou emissão de dívida nos mercados internacionais. (PB)