Título: Reforma do Judiciário: um caso de assimetria
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2005, Legislação & Tributos, p. E2

Embora o título deste artigo refira-se especificamente à reforma do Poder Judiciário (Emenda Constitucional nº 45/04), a análise que nele se pretende imprimir não se circunscreve ao que se contém na epígrafe, alcançando outra emenda que lhe é anterior. Com efeito, a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, alterou, dentre outros, o artigo 132 da Lei Fundamental, garantindo estabilidade aos membros das procuradorias dos Estados e do Distrito Federal. Ocorre, entretanto, que não há previsão constitucional que assegure aos membros da Advocacia-Geral da União (AGU) idêntica prerrogativa, isto é, a de ter a garantia da estabilidade prevista no texto constitucional. Esclareça-se, por relevante, que não se está afirmando que os membros da Advocacia-Geral da União encontram-se despidos da garantia da estabilidade. Não. O que se está asseverando é que a garantia dispensada aos advogados públicos federais, especificamente no que diz respeito à estabilidade, não encontra-se expressamente prevista no Estatuto Supremo da República. Ela é de natureza infra-constitucional. Não parece razoável que procuradores de Estado e do Distrito Federal gozem de prerrogativa não estendida aos advogados públicos federais. Uns e outros defendem o patrimônio público, de toda a sociedade. Os primeiros o patrimônio dos entes federados. Os últimos o patrimônio da União, da pessoa jurídica de direito interno que na forma federativa de Estado representa o todo. Mais recentemente, o constituinte reformador introduziu modificações de profunda relevância no texto original de 1988, na parte relativa ao Poder Judiciário. Refiro-me à Emenda Constitucional nº 45 de 2004, conhecida como reforma do Judiciário, que transitou por ambas as Casas do Legislativo Federal por mais de uma década.

As assimetrias criadas pelas EC 19/98 e 45/04 não parecem atender ao espírito republicano da Assembléia de 1988

Dentre as mudanças preconizadas na dita "reforma" encontra-se a modificação do artigo 93 da Constituição Federal. À finalidade deste breve artigo interessa-nos a nova redação dada ao inciso I do referido dispositivo constitucional, que desde o texto original da Constituição estabelece que o ingresso na magistratura se dá por concurso público, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), obedecendo-se, nas nomeações, a ordem de classificação. A alteração resultou no acréscimo de um período com o seguinte conteúdo: "exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica". Essa decisão do Congresso Nacional encontra-se imune à crítica, porquanto ninguém a de negar a necessidade de que o futuro membro da magistratura ou do Ministério Público tenha, antes, experiência profissional mínima, evitando que ingresse em uma dessas instituições somente com cabedal teórico. Trata-se de medida digna de aplausos. Ocorre que exigência semelhante deveria ser estendida também as outras carreiras jurídicas, especialmente aos advogados públicos que, não custa lembrar, defendem o bem público, patrimônio de toda a sociedade. Um procurador da Fazenda Nacional, por exemplo, presta consultoria jurídica ao Ministério da Fazenda sobre todos os assuntos que lhe são pertinentes (câmbio, impostos, taxas, dívida ativa, empréstimos externos, garantia da União etc), além de defender a União em questões tributárias das mais intrincadas e não raro de valores estratosféricos. Situação semelhante enfrenta o procurador de Estado ou mesmo de um município do porte de São Paulo ou Salvador. Ora, se a finalidade do Estado é promover o bem comum, e se a promoção do bem comum exige juízes e promotores mais experientes, não parece razoável estender essa exigência constitucional às demais carreiras essenciais à Justiça? Se do juiz e do promotor de Justiça que atuam numa comarca de 20 mil habitantes (onde é muito comum as brigas entre vizinhos e pequenos proprietários de terra) se deve exigir experiência anterior à assunção ao cargo, que razão haveria para dispensá-la aos advogados públicos, que invariavelmente lidam com segmentos e valores numericamente mais expressivos? As assimetrias criadas pelas Emendas Constitucionais de nº 19/98 e 45/04 não me parece atender ao espírito republicano que permeou a Assembléia Constituinte de 1988.