Título: Governo apresenta projeto de lei para desconcentrar incentivos culturais
Autor: Caldeira , João Bernardo
Fonte: Valor Econômico, 23/03/2009, Política, p. A8

À frente do Ministério da Cultura desde agosto, quando deixou o posto de braço direito do então ministro Gilberto Gil, Juca Ferreira enfrenta agora seu maior desafio: a pasta apresenta hoje o projeto de lei que terá que ser aprovado pelo Congresso para estabelecer novas regras da Lei Rouanet, principal instrumento de fomento à cultura no país. Ciente da expectativa em torno da proposta, o ministro não permitiu que o projeto seguisse direto para apreciação do Congresso, como sugeriu a Casa Civil. Sem medo dos 45 dias de consulta pública em que o projeto pode sofrer críticas e sugestões, Ferreira afirma que as alterações vão revolucionar o setor: "Se as empresas aumentarem em pelo menos 50% sua contribuição, o novo modelo deve dobrar os recursos para a cultura", diz, em entrevista por e-mail.

O principal objetivo do novo texto, obtido com exclusividade pelo Valor, é aumentar a participação do Estado na elaboração das políticas públicas do setor. Como a maioria dos recursos foi canalizada para a renúncia fiscal - apenas um dos instrumentos de fomento originalmente previstos -, a iniciativa privada passou a orientar quais os projetos merecedores de apoio. Para reverter o que o MinC qualifica de distorção, seriam diminuídos os percentuais permitidos de isenção.

"Hoje, basta o projeto tratar de música instrumental para receber 100% de renúncia, enquanto o investimento em música popular, por mais importante que seja, nunca poderá ultrapassar o índice de 30%. Não é um sistema justo", diz.

Para avaliar a relevância de cada ação cultural proposta, seria criado o Conselho Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Conafic), que estabeleceria os critérios que definirão os patamares de isenção, entre 30% e 100%. Dessa maneira, algumas iniciativas hoje totalmente patrocinadas com dinheiro público precisariam contar também com verbas privadas. A intenção é equacionar melhor o quadro atual, em que apenas 10% do total investido por meio da renúncia - que somou cerca de R$ 900 milhões no ano passado - sai do bolso dos patrocinadores.

Otimista, diz não acreditar que as mudanças encontrarão resistência entre empresários. Vislumbra até mais recursos privados sem mexer no teto de patrocínio para pessoa jurídica, hoje de 4% do Imposto de Renda (o limite para pessoa física também permanece os atuais 6%).

Para atrair os empresários, a proposta prevê estímulos de visibilidade de marca para as empresas, premiações para os maiores investidores e concessão de empréstimos.

Previsto na concepção original da lei mas jamais posto em prática, outro mecanismo de investimento privado cujas regras seriam alteradas é o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). Como envolve risco, as empresas não se sentiram confortáveis para alocar verbas no fundo, um comportamento que Ferreira pretende modificar.

"Estamos trabalhando com as estatais para demonstrar o uso do Ficart", explica. A lei também prevê nova parceria com o empresariado: o esperado vale-cultura, que beneficiaria 12 milhões de trabalhadores. Seu valor de face seria de R$ 50, com 30% de dedução fiscal para a empresa, 20% financiados pelo trabalhador e o restante pelo empregador.

O Conafic também faria a gestão dos recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Pelas contas do ministro, a meta é que em 2012 o FNC já esteja operando com R$ 1 bilhão, o dobro do valor previsto para este ano. "É um horizonte ambicioso para mudar o entendimento do que é cultura e elevar nossa participação no Orçamento Geral da União de 0,3% para 0,7%", afirma.

Garantindo mais recursos para o FNC junto ao Planejamento, será possível ampliar o acesso à produção cultural. Para ilustrar o atual desequilíbrio, enquanto o mecanismo de isenção concentra 80% de seus recursos no Sudeste, o modelo atualmente em vigor do FNC nunca investe mais do que 30% do montante total numa determinada região.

As receitas já previstas para o FNC, como recursos orçamentários e doações, seriam mantidas. A novidade é o lançamento da Loteria Federal da Cultura, atualmente em negociação com a Caixa Econômica, cujos recursos seriam alocados no Fundo Setorial das Artes. Além disso, o FNC passaria a poder copatrocinar empreendimentos culturais, recebendo assim eventuais rendimentos.

Ainda que a participação do governo torne-se mais efetiva com o novo modelo, o ministro garante que não haverá dirigismo estatal. "Nem tampouco das diretorias de marketing. Hoje, apenas projetos que podem dar forte retorno de imagem interessam. Isso gera distorção monstruosa: dinheiro público contribuindo para aumentar a concentração social e territorial."

Ferreira comenta também outro ponto polêmico da lei: a disposição, para fins não-comerciais, do uso dos produtos culturais financiados após o período de três anos. Em caso de fins educacionais, as obras estariam disponíveis um ano e meio após seu lançamento. O ministro observa que o período estipulado não vai interferir na carreira comercial da obra: "Hoje, um bem financiado com dinheiro público não pode ser usado por um professor ou estudante. De um lado, perde a educação sem a cultura. De outro, livros, CDs e filmes chegam pouco à sociedade."

Depois da consulta pública, que poderá ser prorrogada, o texto vai ao Congresso. Ferreira diz acreditar que não há um clima de confronto com a classe, principalmente pelo fato de a proposta ter sido elaborada com consulta a mais de 30 mil pessoas em seis anos de debates.