Título: Com fé no Legislativo
Autor: Brito, Ricardo
Fonte: Correio Braziliense, 17/01/2010, Política, p. 4

Familiares de vítimas cobram responsabilização criminal por abusos cometidos na ditadura

Associações de familiares vítimas da ditadura e representantes do governo apostam na mobilização dentro do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir a abrangência da Lei de Anistia para possibilitar a responsabilização criminal de agentes e autoridades do Estado que cometeram crimes durante o regime de exceção. O tema voltou à discussão depois que, no fim de 2008, o governo editou o decreto instituindo o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que prevê, entre outras medidas, a criação da chamada Comissão da Verdade para investigar abusos cometidos durante a ditadura.

O texto do terceiro PNDH recebeu forte crítica dos militares. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, ameaçou entregar o cargo ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva caso o governo mantivesse alguns termos do decreto original. Os chefes das Forças Armadas também deixariam seus postos. Num recuo, Lula assinou, semana passada, novo decreto, no qual trocou o texto dos objetivos da Comissão da Verdade. Saiu a expressão ¿no contexto da repressão política¿ e entrou a ¿prática de violações de direitos humanos, suas ramificações nos diversos aparelhos do Estado e em outras instâncias da sociedade¿. A última versão do decreto também criou um grupo de trabalho coordenado pela Casa Civil para elaborar um projeto de lei sobre o tema para o Congresso.

A avaliação dos militantes da causa é de que a mudança de palavras não alterou a essência do decreto. Em resumo, uma vitória. ¿O presidente Lula tem uma sabedoria inata e ele chegou a uma solução que garante a permanência da Comissão da Verdade¿, afirmou Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Segundo Abrão, o mais importante não é como os objetivos da comissão ficaram literalmente definidos no plano, mas qual feição terá o texto após passar pelo Legislativo. ¿Importará mesmo é a efetiva tramitação do projeto no Congresso. O que não pode é a Comissão da Verdade ser instituída sem ter efetivos poderes para a busca da verdade¿, frisou Abrão, ao ressaltar que a Comissão de Anistia detém, atualmente, um acervo com relatos de quase 60 mil pessoas sobre perseguições na ditadura. Esse material, disse, poderia servir de base para as apurações.

Toalha na lona O presidente da ONG Tortura Nunca Mais, Carlos Gilberto Pereira, disse que jogou a toalha sobre a capacidade do governo de ser protagonista no tema. Ele deposita suas esperanças no debate na esfera legislativa. ¿O grupo vai agir no Congresso. O grito dos militares é da impunidade. Mas temos direito de identificar e punir como a esquerda foi punida na época¿, disse o represente da ONG sediada em São Paulo. Também há uma aposta no STF, que julgará a agrangência da Lei de Anistia, numa ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Os militantes estão cientes de que, apesar da futura pressão, será difícil aprovar um projeto desses em um ano de eleições, quando tradicionalmente o calendário de votações é encurtado e a disposição dos parlamentares de discutirem temas polêmicos se reduz. Outra barreira é que os principais líderes da base aliada da Câmara e do Senado já afirmaram que a prioridade do governo Lula para este ano é aprovar os projetos que tratam do pré-sal.

Versões O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso editou as duas primeiras versões do Plano Nacional de Direitos Humanos, com muitas semelhanças com a proposta apresentada no fim do ano passado por Lula. Os textos de FHC, de 1996 e de 2002, e o de Lula sinalizam, por exemplo, para certo controle na programação dos veículos de comunicação ¿comprometidos com os direitos humanos¿. A principal inovação do atual presidente é a política de criar a Comissão da Verdade para eventualmente punir na Justiça agentes do Estado envolvidos em crimes cometidos durante a ditadura militar.

STF julga revogação

Assim como ocorreu em outros países da América do Sul, a revisão de leis que anistiaram a punição de crimes praticados por agentes e autoridades do Estado durante a ditadura militar será decidida pelo Judiciário. Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com ação para revogar parte da Lei nº 6.683 de 1979 de forma a não permitir que a anistia seja estendida a autores de crimes comuns praticados por agentes públicos contra opositores do regime. Para a OAB, não é possível tratar de forma igual os crimes de opinião e os políticos cometidos pelos integrantes do aparato do Estado.

O processo, cujo relator é o ministro Eros Grau, ainda não recebeu parecer da Procuradoria Geral da República e não tem prazo para ser julgado. A esperança das associações de parentes de vítimas da ditadura é que um pronunciamento do Judiciário ¿ no caso, favorável à revogação da Lei de Anistia ¿ dê forças para que ações dessa natureza prosperem. Em 2008, a Justiça paulista extinguiu ação movida pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino contra o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos responsáveis pelo aparelho de repressão DOI-Codi, para declará-lo torturador. Outra ação contra Ustra, apresentada pelo Ministério Público Federal, está congelada por decisão judicial.

Para Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, leis de anistia não são eternas. Segundo ele, nos 30 anos de vigência da norma brasileira, um novo pensamento jurídico não admite a prescrição e a anistia para tais delitos. ¿No Brasil, vigorou por muito tempo uma concepção política de que a Lei de Anistia seria uma imposição do esquecimento¿, afirma Abrão. A OAB só entrou com a ação depois que, em julho de 2008, a Comissão de Anistia promoveu audiência pública em que discutiu os limites da lei brasileira e a eventual punição dos torturadores. (RB)