Título: Bretton Woods, o G-20 e a reforma do sistema monetário internacional
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 03/04/2009, Opinião, p. A14
O momento atual, como em 1933, não se caracteriza pela presença de um poder hegemônico claramente definido
"Devemos atribuir grande importância à simultaneidade dos movimentos de aumento dos gastos. A pressão sobre o balanço exterior, que cada país receia ser o resultado do aumento de seus próprios gastos, será anulada se os outros países estiverem adotando a mesma política ao mesmo tempo. A ação isolada pode ser imprudente. A ação geral não traz qualquer perigo... a função desta Conferência, a meu ver, é formular algum tipo de ação conjunta que possa aliviar as ansiedades dos bancos centrais e amenizar a tensão sobre suas reservas... Não podemos, pela ação internacional, fazer os cavalos beberem. Esta é sua função doméstica. Mas podemos fornecer-lhes água".
A passagem acima pareceria extraída de recente pronunciamento de algum chefe de Estado, ou de um artigo de Paul Krugman, ou ainda de especialista do Banco Mundial. Nada disso: foi publicada há 76 anos, em março de 1933, pelo jornal britânico "The Times". Seu autor era o já célebre economista John Maynard Keynes, que fazia alusão à Conferência Econômica Mundial, a se realizar em Londres, em junho-julho daquele ano, para debater a grave crise econômica que então ameaçava a ordem capitalista.
Ontem, também em Londres, os líderes das 20 maiores economias do planeta discutiram propostas para buscar superar as imensas dificuldades financeiras da atualidade. É a maior crise desde a da década de 30 do século passado.
Analistas têm comparado as recentes cúpulas do G-20 com as reuniões que culminaram nos acordos de Bretton Woods (EUA), em 1944, quando foram lançadas as bases do sistema monetário internacional que sustentaria o maior ciclo de crescimento econômico da história do capitalismo. Conseguirão os líderes do G-20 - perguntam alguns - encontrar soluções tão engenhosas e criativas como as de Bretton Woods?
Já se disse que, em história, as analogias mais empobrecem que enriquecem os espíritos. Contudo, se o objetivo é encontrar, no passado, ocasião em que as circunstâncias fossem semelhantes às atuais, seria mais revelador mirar na Conferência de 1933 do que em Bretton Woods - como recentemente sublinhou nosso representante no FMI, Paulo Nogueira Batista Jr.
As condições políticas e econômicas com que deparava o sistema internacional durante as negociações de Bretton Woods mostram-se radicalmente diferentes das do momento contemporâneo. Para começar, as maiores potências do mundo encontravam-se em guerra: os negociadores britânicos e franceses, por exemplo, enfrentavam dificuldades para atravessar o Atlântico com segurança. Naturalmente, os países do Eixo foram alijados do processo negociador.
A guerra, somada à década da Grande Depressão que lhe antecedeu, havia semeado toda sorte imaginável de protecionismo e regionalismo: acordos bilaterais de comércio, quotas de importação, controles de capitais, restrições à conversibilidade, sistemas regionais de compensação cambial. O sistema monetário internacional não estava em crise: simplesmente não havia qualquer sistema. O padrão ouro, após tremendos solavancos nos anos 30, só continuava a ditar a regra em alguns poucos países; a maioria das moedas - incluindo a libra esterlina, regente do sistema monetário internacional entre 1870 e 1914 - era inconversível fora dos domínios coloniais.
Por outro lado, a hegemonia dos Estados Unidos - nos setores industrial, tecnológico, financeiro e militar - era incontestável no mundo capitalista. Situados fora dos territórios destroçados pela guerra e com tardia participação militar, os EUA mais se beneficiaram do que perderam com os conflitos. O presidente Franklin Delano Roosevelt enfrentava com tranquilidade o processo eleitoral marcado para novembro de 1944, no qual seria eleito pela quarta vez consecutiva. O apoio americano tornava-se, portanto, necessário e suficiente para qualquer ação internacional.
Confrontados com esse cenário, os negociadores de Bretton Woods podiam começar algo realmente novo. Enquanto os líderes políticos estavam evidentemente mais preocupados com os conflitos bélicos, um grupo de economistas e técnicos - que vinham trocando documentos desde 1941 - puderam, com relativa autonomia, montar os alicerces do novo sistema internacional, baseados na reciclagem da liquidez internacional e na preservação das paridades cambiais, ainda que sacrificando a livre mobilidade de capitais.
Bem diversa fora a situação em 1933, ano da Conferência Econômica de Londres. A Depressão atingia o seu momento mais grave, mas não havia consenso sobre as medidas a serem tomadas. As autoridades econômicas, embora tivessem, em sua maioria, abandonado a conversibilidade ouro dos ativos monetários, relutavam em partir para medidas protecionistas mais duras. A maioria das vozes clamava pelo retorno do sistema monetário internacional baseado no metal, o que confundia os espíritos.
A Grã-Bretanha, que antes regulava (moral e materialmente) as finanças internacionais, enfrentava sérias dificuldades para manter a conversibilidade da libra esterlina e amargava profunda recessão desde os anos 20. Os Estados Unidos, mais bem posicionados para exercer a liderança do sistema, não demonstravam, pelo perfil introspectivo de seus congressistas, disposição para assumir o papel internacional de estabilizador sistêmico. Roosevelt acabava de ser eleito pela primeira vez e não compareceu à Conferência de Londres, justamente por temer que a coordenação internacional colocasse por terra seus desígnios de reativação econômica. Era a clássica situação de "crise de transição hegemônica".
Nesse ambiente titubeante, a Conferência terminou em fracasso e a Depressão grassou pelos quatro cantos do planeta.
O momento atual, como em 1933, não se caracteriza pela presença de um poder hegemônico claramente definido, com liderança inquestionável (salvo se confirmadas as expectativas mais otimistas com relação ao presidente Obama). A crise apresenta-se como fenômeno demasiado novo para criar consensos. Para piorar, ainda não foram desbaratados os fetiches do modelo anterior, baseados na liberalização financeira.
Mas a analogia deveria terminar aqui. Dispomos, hoje, de ferramentas de administração macroeconômica muito mais modernas do que as da década de 30. Sabemos a nocividade oriunda da falta de disposição em cooperar. E os países em desenvolvimento, que podem oferecer novos enfoques para o debate, conquistaram seu espaço na mesa.
Contamos, portanto, com várias circunstâncias para evitar que 2009 repita 1933.
José Gilberto Scandiucci Filho é diplomata e doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp.