Título: A verdadeira democracia no FMI
Autor: Kenneth Rogoff
Fonte: Valor Econômico, 08/03/2005, Opinião, p. A11

Os países de mercados emergentes, do Chile à China, vêm defendendo há algum tempo que o Fundo Monetário Internacional (FMI) - o centro nervoso do sistema financeiro internacional -, precisa tornar-se mais "democrático". Eles querem maior influência política na próxima vez que o Fundo decidir socorrer um "companheiro" de mercado emergente, como a Argentina, Brasil, Indonésia e Turquia (infelizmente, por mais positivas que possam parecer as atuais condições de mercado, certamente haverá uma próxima ocorrência de dificuldades para alguns países). Até que isso ocorra, com o inevitável surgimento de novas e melhores práticas de políticas econômicas recomendadas pelo "Consenso de Washington", os países em desenvolvimento querem sentir que, para melhor ou para pior, ajudaram a concebê-las. Concordo inteiramente. A percepção do "déficit de democracia" no FMI é um grave impedimento à legitimidade política do Fundo e à sua capacidade de estabilizar efetivamente situações de crise. Reconheçamos, porém, que a verdadeira democracia só virá quando os países em desenvolvimento de média renda estiverem dispostos a respaldar sua retórica elevada com dinheiro vivo. Agora é o momento certo para fazê-lo, tendo em vista que os EUA converteram, sem rivais, no mais irresponsável tomador de empréstimos do mundo. Os EUA estão drenando enormes 75% do excedente de poupança do mundo. Hoje, até mesmo governos antes insolventes - da Coréia do Sul à Rússia ao México -, estão nadando em dólares. Por que não dar bom uso a esses dólares? Esses países precisam compreender que a insistência em reduzir a proporção de votos a que têm direito os países ricos no FMI é ingênua - se não, pura e simplesmente, hipócrita -, a menos que venha respaldada por dinheiro vivo. No fim das contas, sendo o FMI uma instituição emprestadora de dinheiro, ele precisa manter seus credores satisfeitos. Do contrário, os credores tirarão seus times de campo, e o Fundo (e sua instituição fraterna, o Banco Mundial) será, ele mesmo, vítima de uma crise de endividamento. Atualmente, os EUA, a Europa e o Japão contribuem com a parte do leão para o capital do Fundo, de modo que eles têm um poder desproporcionalmente elevado. Não precisa ser assim. Muitos bancos centrais de países de renda média estão entesourando dólares hoje com o objetivo de impedir que suas moedas registrem valorização muito alta frente ao dólar em queda. A China apenas, com mais de US$ 600 bilhões em reservas, tem dólares em quantidade suficiente para recapitalizar o FMI quatro vezes. Até mesmo governos latino-americanos têm, hoje, suficientes reservas em dólares para comprar a participação da Europa no Fundo. Pode parecer estranho fazer países de renda média arcarem com os custos de seu próprio socorro, mas não é. Eles têm muito mais em jogo nas políticas do FMI do que os países ricos.

Hoje, até governos antes insolventes estão nadando em dólares, enquanto os EUA drenam 75% do excedente de poupança do mundo

Muitas pessoas esqueceram-se de que o FMI foi originalmente concebido como uma cooperativa - o Fundo socorreu a Inglaterra apenas algumas décadas atrás, e quase teve de ir em socorro da França. As pessoas esquecem-se desses episódios porque os recursos do FMI não acompanharam a explosão dos mercados mundiais de capital, de modo que hoje a instituição não dispõe da capacidade de socorrer uma Itália ou um Japão (embora isso possa muito bem vir a ocorrer algum dia). Para que o Fundo retome sua identidade de cooperativa, portanto, faz sentido deslocar seu centro de gravidade. Será que uma presença de maior peso dos países em desenvolvimento de renda média efetivamente mudaria as coisas se eles fossem grandes credores no Fundo? Não sei, não. É verdade que nenhum país em desenvolvimento jamais pareceu votar contra uma grande operação de socorro a um de seus irmãos, não importa quão mal estruturada fosse. Mas será que essa benevolência indiscriminada persistiria, se os países de renda média soubessem que seus votos efetivamente contariam e que eles estariam gastando seu próprio dinheiro? Duvido. No geral, acredito que as políticas de socorro praticadas por um FMI "democrático" seriam bastante semelhantes às atuais. Afinal de contas, as leis da economia sempre irão obrigar países devedores pródigos a adotar medidas de austeridade. Se um país que vem tomando dinheiro emprestado como um bêbado de repente vê seu crédito secar, irá apertar o cinto - elevar impostos, cortar gastos -, ou ambas as coisas, com ou sem um emprestador internacional de última instância. Talvez melhorasse a maneira como o FMI trata seus pacientes, talvez não. De qualquer forma, maior legitimidade política provavelmente tornaria a autoridade do Fundo, nas crises, mais competente e mais crível, possivelmente encurtando as crises e minimizando o sofrimento que causam. A grande incógnita é se os países ricos que há tanto tempo detém o poder no Fundo efetivamente abririam mão de parte de seu poder. Eles deveriam e poderiam fazê-lo, mesmo se os mercados financeiros mundiais levarem algum tempo para se ajustar a um papel ligeiramente menor para o dólar. Eles realmente têm pouco a perder e muito a ganhar. Assim, há um aspecto positivo nos atuais enormes déficits fiscal e em conta corrente dos EUA. A estrutura dos desequilíbrios mundiais - com os EUA como grande tomador de empréstimos e os mercados emergentes como credores -, oferece uma rara oportunidade para financiar uma mudança na governança do FMI. Façamos isso agora, antes que a oportunidade nos escape - e venha a próxima rodada de crises.