Título: Política monetária, câmbio e abertura financeira
Autor: Luiz Gonzaga Belluzzo
Fonte: Valor Econômico, 08/03/2005, Opinião, p. A11

O sistema monetário internacional desenhado em 1944, em Bretton Woods, pretendia funcionar de acordo com as seguintes regras do jogo: taxas fixas, mas ajustáveis, de câmbio; limitada mobilidade de capitais; cobertura de déficits em transações correntes por uma instituição pública multilateral. Em sua concepção original, o FMI deveria funcionar como um provedor de liquidez aos países com desequilíbrio de curto prazo no balanço de pagamentos. O artigo VII de seus estatutos - a chamada cláusula da "moeda escassa" - previa a adoção de controles cambiais em situações de crise aguda no abastecimento de divisas. Câmbio e juros, nesse sistema, eram preços-âncora, cuja relativa estabilidade e previsibilidade eram vistas como essenciais para a formação das expectativas dos possuidores de riqueza envolvidos nas decisões de produção e investimento. Este "modo de regulação" tinha como objetivo impedir que condicionantes ou choques externos passassem a comandar a política econômica doméstica e a definir a trajetória das economias nacionais. As políticas monetárias e fiscais, os sistemas financeiros nacionais, deveriam estar voltados para a sustentação de taxas elevadas de crescimento econômico e para a maximização do bem-estar dos cidadãos. Nas últimas quatro décadas, a desregulamentação dos mercados e a crescente liberalização dos movimentos de capitais entre as principais praças de negócios mudaram radicalmente o panorama. A desregulamentação financeira rompeu os diques de segurança erigidos depois da crise dos anos 30. Estas restrições à finança buscavam impedir que os bancos comerciais se envolvessem no financiamento de posições "especulativas" nos mercados de riqueza (ações e imóveis). A queda das barreiras que separavam os bancos comerciais dos bancos de investimento e de negócios suscitou, como era previsível, a multiplicação de canais de expansão do crédito e da moeda. Diante da intensificação da concorrência entre os bancos comerciais e demais intermediários financeiros, os bancos centrais só podem exercer controle sobre a moeda criada pela expansão do crédito, afetando o preço da liquidez, mediante o manejo da taxa de juros do mercado monetário. O velho monetarismo, o do controle dos agregados monetários, está morto e enterrado por obra e graça das inovações financeiras, ou seja, da vitória definitiva da moeda de crédito. Além disso, nas economias contemporâneas a finança direta e "securitizada" ganhou maior importância e, com ela, cresceram com enorme rapidez os mercados de derivativos - como proteção contra os riscos de mercado e de liquidez e como instrumentos de "descoberta" da trajetória e variação dos preços dos ativos. Estas transformações ampliaram as possibilidades de alavancagem financeira e, conseqüentemente, de ocorrência de bolhas nos mercados de ativos e de crédito, a despeito (dizem uns) ou por causa (dizem outros) da generalização dos derivativos.

Alto nível de reservas exigido para garantir a estabilidade cambial é um dos sintomas da impossibilidade de adoção da flutuação pura

No passo destas transformações, nos países centrais, os regimes cambiais caminharam na direção de um sistema de taxas flutuantes - ao contrário da "globalização financeira" do último quartel do século XIX que instituiu padrão-ouro e seu sistema de taxas fixas. Tratava-se, conjetura-se, de escapar das aporias da "trindade impossível" ou seja, da convivência entre taxas fixas, mobilidade de capitais e autonomia da política monetária doméstica. Na periferia, alguns países de moeda não-conversível, particularmente os da América Latina, promoveram a abertura financeira. Num primeiro momento, as políticas de liberalização financeira e o generoso ingresso de capitais permitiram a "ancoragem" cambial, arma potente de estabilização nas economias de alta inflação. No Brasil e, sobretudo na Argentina, a abertura financeira e a valorização cambial promoveram o controle da inflação mas, ao mesmo tempo, suscitaram o crescimento do passivo externo e da dívida pública. O resultado foi a fragilização do balanço de pagamentos, a crescente imobilização da política fiscal e a subordinação da política monetária às avaliações mercuriais dos mercados globais. A trajetória insustentável das economias culminou na crise e na adoção do câmbio flutuante. A âncora nominal ficou por conta do regime de metas de inflação. A abertura financeira inverteu as determinações do balanço de pagamentos. Nos momentos de farta liquidez internacional, países com taxas de câmbio flutuantes, dotados de moedas frágeis, ou seja, desprezível participação nas transações internacionais, correm o risco da valorização indesejada da moeda local ou estão obrigados a realizar operações de esterilização dos efeitos monetários da expansão das reservas. O montante relativamente elevado de reservas que os bancos centrais devem manter para garantir a estabilidade do câmbio é um dos sintomas da impossibilidade de adoção da flutuação cambial pura. Como os títulos de riqueza em moeda local e os denominados em dólares são substitutos muito imperfeitos, a arbitragem entre juros internos e externos não logra a convergência das taxas e acaba por impor a "administração" do câmbio. Muitos países da periferia, diz o economista Michel Aglietta, revelam preocupação com a manutenção de suas vantagens competitivas e com a volatilidade dos movimentos de capitais. "Eles não podem, portanto, permitir que o mercado jogue com a taxa de câmbio. Alguns apreenderam à custa de muito sacrifício que valorizar a taxa de câmbio nominal em um ambiente de fragilidade financeira pode desencadear um processo deletério de desconfiança. Regimes de câmbio intermediários, de flexibilidade controlada, constituem um caminho estreito para a coordenação entre os diferentes objetivos de política monetária."