Título: Presidente da Bolívia submete renúncia; Brasil tenta evitar saída
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 08/03/2005, Especial, p. A12
O presidente da Bolívia, Carlos Mesa, apresentou sua carta de renúncia ao Congresso do país, em meio a uma crise que vem causando "grande inquietação" nos governos da região. O governo brasileiro, já na manhã de ontem, articulava uma movimentação no continente em favor da permanência do chefe de Estado boliviano, informou o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia. No fim da tarde, o presidente Luis Inácio Lula da Silva falou por telefone com Mesa, a quem manifestou "solidariedade" e disse esperar que haja em breve uma "solução constitucional" para a crise no país vizinho. O pedido de renúncia deve ser analisado nos próximos dias. Analistas afirmam que sua aceitação não é certa, pois a saída do presidente poderia agravar as tensões internas no país. A renúncia de Mesa veio após dias de protestos pedindo a privatização de empresas de abastecimento de água e o aumento dos royalties pagos pelas empresas que exploram o gás natural, principal produto da pauta de exportações do país. As próximas eleições presidenciais da Bolívia estão marcadas para junho de 2007. Cogita-se, como forma de superar a crise, até a antecipação do pleito. Mesa, que é considerado um moderado, poderia tanto receber o voto de confiança do Congresso, continuando até o fim do mandato, quanto assumir o papel de magistrado máximo de um processo eleitoral antecipado. Foto: Associated Press
Uma aposta política arriscada: Carlos Mesa acena do palácio presidencial, na capital La Paz, após submeter carta de renúncia ao Congresso boliviano Mesmo o principal líder oposicionista, Evo Morales, declarou que não sabe como seu partido, o MAS (Movimento ao Socialismo), vai votar o pedido de renúncia. Candidato derrotado no segundo turno das eleições presidenciais passadas, Morales é de origem indígena e fez carreira liderando os tradicionais plantadores de folha de coca, conhecidos como cocaleiros. Ele é um dos principais responsáveis pela mobilização popular e pelas obstruções das estradas, uma forma recorrente de protesto no país. "Esses problemas deveriam ser resolvidos estritamente nos marcos constitucionais e legais, e não simplesmente pelas pressão das ruas, ainda que a pressão das ruas seja respeitada", comentou Garcia. Pelas características do processo político boliviano, o pedido de renúncia pode funcionar como um pedido de "voto de confiança" ao Congresso, interpretou Garcia. O assessor de Lula informou que o governo brasileiro vem acompanhando de perto a crise boliviana desde a renúncia de Gonzalo Sánchez de Lozada (de quem Mesa era vice-presidente), no final de 2003. Sánchez de Lozada havia sido o mais votado no primeiro turno direto da eleição presidencial de 2002 e acabou derrotando Morales no segundo turno, que na Bolívia é feito de modo indireto, no Congresso. Sua renúncia se deu na esteira de uma crise semelhante, mas que foi inicialmente reprimida com violência pelo presidente, o que acabou causando a morte de 56 manifestantes. Desde então, o próprio Garcia esteve várias vezes na Bolívia, numa delas acompanhando as discussões e manifestações em relação à Lei de Hidrocarbonetos. É essa lei a razão das maiores radicalizações no país ultimamente: o Congresso aprovou a parte da Lei de Hidrocarbonetos que prevê cobrança de 18% de royalties e 33% de imposto sobre o gás explorado por companhias como a Petrobras. Segundo fontes diplomáticas brasileiras, esses percentuais são considerados aceitáveis pelas empresas do setor no país. Mas a oposição, que exigia 50% de royalties e impostos ainda a definir, organizou bloqueios de estradas, que se juntaram a outros bloqueios movidos por razões diversas, como o protesto de uma comunidade na periferia de La Paz pela revogação da concessão dos serviços de água administrados por uma multinacional de origem francesa. Garcia comentou que não conversou "ainda" com Evo Morales, que mantém contatos estreitos com as tendências mais à esquerda do PT. "Se houver necessidade de contato com Evo Morales, e se esse contato vier a contribuir para resolver a crise boliviana, ele será feito; mas, no momento atual não está em cogitação", disse. Ontem, a pedido do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia telefonou para autoridades do gabinete de Mesa e, às vésperas de uma viagem para Uruguai e Argentina, aproveitou para trocar impressões sobre o assunto com o novo ministro de Relações Exteriores uruguaio, Reinaldo Gargano, e o vice-ministro de Relações Exteriores argentino, Jorge Tayana. Nos contatos feitos com autoridades bolivianas pelos governos do Brasil e da Argentina, os interlocutores na Bolívia "estavam muito tranqüilos e acreditavam que o desfecho da crise seria positivo", relatou Marco Aurélio Garcia. Por volta de 14 horas, pouco depois da formalização do pedido de renúncia feita por Mesa, o presidente Lula instruiu seus assessores de que seria importante ter manifestações não só do Brasil, mas de todo o Mercosul. A diplomacia brasileira passou então a procurar contato com a ministra de Relações Exteriores do Paraguai, Leila Rachid, que responde pela presidência do bloco neste semestre. Enquanto isso, chegou a Brasília a notícia de que a reunião de vice-ministros de Relações Exteriores da Comunidade Sul-Americana de Nações, que ocorre no Peru, havia divulgado nota reforçando o apoio ao presidente demissionário. Na curta nota, os vice-ministros encarregam o governo peruano de transmitir a Mesa o "mais firme respaldo ao objetivo de manter e de consolidar a institucionalidade democrática na Bolívia e de encontrar solução para a crise que vive neste momento aquele país irmão, que marque o início da conciliação nacional". Segundo Marco Aurélio garcia, manifestações como a que será feita pelo Mercosul e a dos vice-chanceleres da Comunidade Sul-Americana de Nações fazem parte de uma série de ações diplomáticas acertadas com os países da região, para "lograr o mais rapidamente possível a volta da normalidade" na Bolívia. "Nos preocupa quando há esses riscos de um processo de desestabilização de um governo com o qual todos os demais governos da região mantém relações das mais cordiais. É que sejam asseguradas as instituições", comentou Garcia. Para facilitar a superação da crise e dar condições de governo a Carlos Mesa, o governo brasileiro tem anunciado projetos de financiamento a "pelo menos três ambiciosos projetos binacionais, de pólos gás-químico, gás-elétrico e minero-metalúrgico, e à construção de uma estrada de ligação entre os dois países, que beneficiará a região de Santa Cruz de la Sierra". Os projetos permitirão a melhoria da economia boliviana. A estrada atende a uma região (Santa Cruz) que "estava indisposta" com o governo, mencionou Garcia, em referência ao movimento separatista que chegou a empolgar líderes políticos e empresários de Santa Cruz. O departamento de Santa Cruz é também a região à qual pertence o presidente do Senado boliviano, Hormando Vaca Diez, que assumiria o governo caso aprovada a renúncia de Mesa. O assessor de Lula fez questão de lembrar que a ação tomada no caso boliviano é a mesma adotada pelo governo brasileiro em outros casos de ameaça ao mandato de um presidente legítimo na região - uma referência velada ao golpe frustrado contra o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em 2002, que teve a oposição imediata por parte do governo brasileiro.