Título: Fundos soberanos: rumo aos emergentes?
Autor: Santiso , Javier
Fonte: Valor Econômico, 06/04/2009, Opinião, p. A13

momento de crise pode acelerar o deslocamento de centros econômicos na direção do Sul

Os fundos soberanos se converteram nas estrelas emergentes do mundo financeiro ao longo dos anos recentes. Ultimamente, o brilho destes astros parece ter se reduzido. A agora real crise financeira que fustiga os países da OCDE está afetando duplamente estas instituições.

A maioria delas, por terem investido nos setores financeiros da City e de Wall Street, durante os anos de 2007 e 2008, enfrenta agora depreciações substanciais nas suas carteiras de renda variável. Foram afetados não só os seus ativos, como também os seus passivos: às perdas somam-se agora receitas menores, os preços do petróleo e das matérias-primas que as irrigam de liquidez desmoronaram desde os picos de meados de 2008. Como se não bastasse, o comércio internacional e as exportações estão se contraindo, afetando também os fundos soberanos asiáticos.

Qual será a direção dos seus investimentos no futuro? Conforme assinalado num estudo publicado no fim de 2008 (Javier Santiso, "Sovereign Development Funds: Key Financial Actors of the Shifting Wealth of Nations" [Fundos Soberanos de Desenvolvimento: Principais Atores Financeiros do Deslocamento da Riqueza das Nações], OECD Development Centre Emerging Markets Network Working Paper, 2008), veremos a combinação de dois movimentos importantes: mais investimentos nas suas bases nacionais e mais investimentos voltados para os países emergentes. Por um lado, os fundos soberanos enfrentam pressões internas para repatriar liquidez rumo às suas bases nacionais e regionais. Por outro lado, eles descobriram com a crise atual, como todos os investidores do mundo, que as equações e regras de investimento mais arraigadas cambalearam ou quebraram com esta crise.

Em especial, a ideia de que investir nos Estados Unidos ou na Europa era sinônimo de investimentos seguros, estáveis ou rentáveis foi desmentida pela crise atual. A Kuwait Investment Authority (KIA), por exemplo, reconheceu prejuízos superiores a US$ 270 milhões decorrentes dos seus investimentos de US$ 3 bilhões no Citibank. Estima-se que no total os fundos soberanos do Golfo podem ter perdido 40% dos seus ativos, em compasso com as desvalorizações de mais de 30% sofridas pelo fundo soberano norueguês. Assim, segundo o Council for Foreign Affairs, o maior fundo soberano do mundo (Adia) pode ter perdido mais de US$ 300 milhões de um total de US$ 800 milhões no começo de 2008. A crise não se limita a dimensões financeiras e econômicas vultosas, como estamos descobrindo dia após dia, ela apresenta também uma dimensão cognitiva que abarca os teoremas mais simples sobre os quais se apoiava a gestão de ativos.

A consequência de tudo isso é que, como temos argumentado, os fundos soberanos estão acelerando o reequilíbrio das suas carteiras na direção dos emergentes. Na esteira das perdas acumuladas nas empresas ocidentais, os fundos do Kuait, Dubai, Qatar e Abu Dhabi estão realizando uma repatriação importante de capitais na direção das bolsas domésticas. O Kuwait Investment Authority (KIA), por exemplo, reinvestiu ao longo de 2008 na bolsa local mais de US$ 4 bilhões, que estavam aplicados em bolsas ocidentais. A Qatar Investment Authority (QIA), por sua vez, iniciou injeções de liquidez nos bancos domésticos de mais de US$ 5 bilhões ao longo do último trimestre de 2008.

Os dados elaborados pela consultoria Monitor Group confirmam esta tendência. No terceiro trimestre de 2008, os últimos dados disponíveis, um total de 46% das transações realizadas por estes fundos ocorreram nas suas bolsas locais. Durante o segundo e terceiro trimestres de 2008, mais de 56% das transações foram efetuadas nos mercados emergentes (US$ 23 bilhões sobre um total de US$ 42 bilhões). As aplicações nos países da OCDE foram reduzidas durante todo o ano de 2008, passando de US$ 37 bilhões no primeiro trimestre para menos de US$ 9 bilhões no segundo e menos de US$ 8 bilhões no terceiro trimestre. O tombo mais extraordinário foi registrado nos Estados Unidos - onde os investimentos passaram de US$ 23 bilhões a apenas US$ 2,5 bilhões entre o primeiro e o terceiro trimestres de 2008.

Na realidade, ao contrário do costumeiramente noticiado pela imprensa e especialistas ocidentais, os investimentos nos países membros da OCDE não dominam a atividade de investimento destes fundos: sobre um total de 1,1 mil transações analisadas desde 2000, a Monitor indica que dois terços delas, representando 40% do total investido durante este período, ocorreu nos mercados emergentes, seja nas suas bases nacionais ou regionais, ou em outras áreas emergentes. A crise atual, que afeta os países desenvolvidos com uma virulência incomum, em vez de inibir, elevará o tropismo do fundo dos fundos soberanos em relação aos emergentes.

Durante 2008, aumentaram as operações de investimento na direção dos emergentes. O fundo soberano de Qatar (QIA) criou fundos em conjunto com as Filipinas (US$ 1 bilhão), Indonésia (US$ 1 bilhão), Líbia (US$ 2 bilhões), Índia (US$ 5 bilhões), Dubai (US$ 1 bilhão) e também Turquia e Vietnã. Estes tipos de acordos estão proliferando, como confirmam o India Oman Special Investment Fund, criado no fim de 2008. A Dubai International Capital (DIC), por sua vez, criou em 2008 um fundo de US$ 1 bilhão para investir na China.

Estes fundos agora começaram a sair das suas regiões tradicionais de investimento, interessando-se até pela América Latina. Assim, o fundo Temasek de Cingapura, investido em quase 80% na Ásia emergente, abriu, também no fim de 2008, escritórios no México e Brasil para fomentar seus investimentos nesta região. Como se não bastasse, fundos soberanos como o QIA, por exemplo, que acaba de criar um fundo de US$ 400 milhões para maximizar as energias renováveis, estão procurando oportunidades em setores como infraestrutura, energia limpa e, de maneira geral, tudo o que estiver vinculado à água, recurso que a América Latina possui em abundância, como atesta a sua farta presença nos setores agroindustriais.

Este apetite poderia favorecer investimentos nos setores em que a América Latina possui fortes complementaridades, como os setores agroindustriais: o Golfo, mas também China e Coreia, que possuem fundos soberanos mas carecem de água, precisam assegurar seu abastecimento em alimentos. Do Peru ao Chile, passando pelo Brasil, Colômbia e Argentina, a região como um todo possui extraordinárias vantagens nestes setores. Algumas empresas agroindustriais, como a brasileira Sadia, são líderes de fato reconhecidos no Golfo. Como se não bastasse, a região também possui campeões como Odebrecht e Cemex, em setores que vão da infraestrutura e serviços à construção, outra grande necessidade em todos os países mencionados. Os campeões dos setores energéticos, como Tenaris, Vale e Petrobras, assim como empresas de ponta em aeronáutica, como a Embraer, também deveriam interessar a esses fundos, na condição de investidores em busca de rendimentos futuros.

As crises incontestavelmente geram destruição de riqueza. Mas são, também, momentos críticos de oportunidades. É possível que o que estamos vivendo no fim acabe acelerando esse deslocamento de centros econômicos na direção do Sul. Em todo caso, caberá a nós vivermos em um mundo no qual as relações entre os países emergentes passarão a cobrar relevância cada vez maior.