Título: Desvalorização surpreendeu o Fed
Autor: Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico, 08/03/2005, Finanças, p. C1

A desvalorização do real em janeiro de 1999, pegou de surpresa os diretores e economistas que se reuniam no Comitê de Política Monetária (FOMC, na sigla em inglês) do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, apenas dois meses após a própria instituição ter participado do megapacote de US$ 41,5 bilhões, coordenado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), para socorrer o Brasil no fim de 1998. Os membros do FOMC ficaram assustados com a velocidade da depreciação e chegaram a temer o contágio da crise brasileira para o restante da América Latina e Ásia. Previram uma "forte" recessão no Brasil naquele ano, o que acabou não acontecendo, e reagiram com alívio quando perceberam que os efeitos negativos não se espalharam no mundo. Com seis anos de atraso, um a mais do que determinam as suas próprias regras internas, essas observações acabam de ser divulgadas pelo Fed na página do banco na internet. Fazem parte da transcrição completa das gravações dos encontros de diretoria em 1999, ano em que - agora se revela - alguns diretores já manifestavam preocupação com a bolha da internet e viram no Brasil um fator de risco e desestabilização para a economia mundial. Foto: David Scull/Bloomberg

Greenspan, presidente do Fed: crise brasileira foi o principal foco de preocupação nas reuniões do início de 1999

"Não esperávamos que uma depreciação viria tão cedo nem que o valor do real cairia 40% ou mais", reconheceu, com apreensão, o presidente do Fed da região de Atlanta, Jack Guynn, também membro não-votante da diretoria do FOMC. Em fevereiro, data da primeira reunião do comitê naquele ano, Guynn adotou uma postura de moderação. Para o economista, a situação internacional era frágil e o possível agravamento dos problemas brasileiros requeria atenção. Mas ele foi duro ao cobrar dos seus colegas foco maior para o que acontecia na economia americana, com forte expansão da demanda doméstica e tendência de alta na inflação. No encontro, os temas internos definiriam o aumento de 0,25 ponto percentual, mas a crise brasileira dominou os discursos de todos os diretores. O próprio Guynn demonstrou pessimismo com os efeitos da desvalorização para os EUA. Lembrou que a região representada por ele, o sudeste americano, exportava US$ 2,6 bilhões anuais para o Brasil - 20% de todas as exportações americanas ao país. "Os problemas do Brasil pioraram o panorama das nossas exportações para a América Latina, atingindo em cheio as perspectivas de lucro para as companhias regionais que estão investindo pesado por lá", disse. Lewis Alexander, um economista que apresentava dados macroeconômicos para ajudar a decisão dos diretores, atribuiu à crise brasileira a mudança de cenários elaborados pelo Fed para a economia mundial. Ele admitiu ter errado em sua previsão de que o governo brasileiro manteria o câmbio administrado. Observou que, após a troca de Francisco Lopes por Armínio Fraga, o real valorizou-se 8,5%. E culpou indiretamente o então governador Itamar Franco, que havia decretado moratória na dívida de Minas, por ter detonado o processo que levou à desvalorização. "A disputa relativa às dívidas de Minas Gerais, embora insignificantes pelo valor, expuseram a falta de consenso sobre a necessidade de consolidar o aperto fiscal no Brasil. Como a disputa ameaçou espalhar-se por outros Estados, as pressões sobre o real cresceram", argumentou Alexander. Ele previu forte queda do PIB brasileiro no primeiro semestre de 1999 e a extensão desse movimento, em escala menor, durante o segundo semestre. Ao fim do ano, o país cresceu 0,8%. O Fed avaliou que o aumento dos juros brasileiros levava a dívida pública a um "caminho explosivo", mas achou que esse aperto da política monetária promovido pelo BC de Fraga era necessário para conter as expectativas inflacionárias. O banco americano não chegou a fazer uma previsão para os índices de preço no Brasil, mas estimava que eles ficariam "entre os exemplos mexicano e coreano". Em 1994, a desvalorização do peso gerou inflação anualizada de 100%. Na Coréia, foi de 30%. A análise dos diretores do Fed mencionava diversos efeitos colaterais da desvalorização brasileira. O presidente do banco central de Chicago, Michael Moskow, demonstrou preocupação com as conseqüências sobre o mercado internacional de soja. Com os produtores brasileiros estimulados a exportar mais por causa do real fraco, ele desenhou um cenário de "preços declinantes" e piores condições "para os nossos agricultores e fabricantes de máquinas agrícolas". Os diretores e economistas do Fed ficaram apreensivos com a elevação do risco-prêmio pago pelos títulos coreanos e tailandeses logo após a desvalorização do real, mas respiraram aliviados ao perceber que o aumento dos spreads foi revertido rapidamente. Também se acalmaram com o compromisso das autoridades argentinas de que a conversibilidade do peso não seria alterada. Um dos economistas afirmou que a depreciação da moeda brasileira levantou especulações sobre a mudança de regime cambial na China e levou Hong Kong a elevar os juros em 1,5 ponto percentual. Em março, porém, a preocupação com o Brasil já baixava de tom. Em abril, o país sequer foi mencionado no encontro do FOMC. A calmaria começava a voltar. "Fiquei impressionado com a falta de repercussão dos eventos do Brasil no restante do mundo", disse um diretor. "Era bem real a noção de que a crise no Brasil poderia desencadear uma espiral mundial", lembrou, em março, a vice-chairman Alice Rivlin. Mas surpreendeu negativamente ao Fed como o governo brasileiro estava despreparado para lidar com a desvalorização, tamanho o "comprometimento" das lideranças do país em preservar o valor do real. Partiu de Lawrence Meyer, um dos membros mais ativos do FOMC, uma avaliação sociológica do quadro: "Os brasileiros são dados a mudanças consideráveis de humor e a períodos em que acreditam ter líderes capazes de feitos grandes e maravilhosos. Eles pensaram que Fernando Henrique Cardoso continuaria capaz de liderar a economia e manter seu compromisso com o câmbio fixo, que foi a base econômica e principalmente psicológica do Plano Real. Prevaleceu a lógica da gravidade, os mercados prevaleceram".