Título: Palocci refuta críticas à política cambial
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2005, Finanças, p. C8

Sempre comedido nas comemorações, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, acha que a economia brasileira vive um momento de sucesso inédito, mas adverte que, em 2005, o governo vai ter que "trabalhar mais", principalmente, na área social. Em entrevista ao Valor, Palocci disse que o governo precisa "acertar" os programas sociais para aumentar o acesso da população pobre à educação e à saúde. Na opinião dele, o que diferencia a atual política econômica da do governo FHC é justamente a maior atenção dada pelo Ministério da Fazenda aos mais pobres. "Isso ajuda o processo econômico como um todo", sustentou. O ministro afirmou que a independência do Banco Central reduz o custo do controle da inflação. Segundo ele, o governo já está convencido disso e, por isso, proporá ao Congresso a formalização da autonomia existente hoje. A dificuldade agora será convencer os partidos políticos, dentre eles, o PT, que sempre foi contra a independência, e a própria sociedade. A seguir, os principais trechos da sua entrevista: Valor: O governo vai propor ao Congresso a formalização da autonomia do Banco Central? Antonio Palocci: A independência do BC já existe na prática. O Brasil fez uma experiência que deu certo. Nesses dois anos, a política monetária tem surtido efeitos importantes e duradouros. Se avançarmos na institucionalização da autonomia do BC, vamos ter resultados ainda melhores, ou seja, vamos controlar a inflação com custos menores. Isso não é achismo. Todos os países que fizeram isso na última década observaram que o custo de controle da inflação passou a ser menor com a autonomia do BC. Valor: O assunto vai entrar na agenda legislativa do governo em 2005? Palocci: Acredito que sim. Minha proposição é essa. Tenho conversado com o presidente, que tem uma visão muito pragmática. Será um dos debates importantes de 2005. Não há no governo problema com a tese, mas ainda há resistências no Congresso, nos partidos e na sociedade. Vamos procurar demonstrar que isso é um avanço para o país. Valor: Nos últimos dez anos, o Brasil teve dois ministros da Fazenda: Pedro Malan e o senhor. Isso é sinal de continuidade? Palocci: Há níveis de mudança e de manutenção de políticas e isso não me incomoda. De fato, tivemos dois ministros nesses dez anos, e se olharmos os dez anos para trás, talvez tenhamos tido dez ministros. O mais importante não é a manutenção de pessoas, mas a de políticas. O Brasil precisa fazer políticas de mais longo prazo. O tripé responsabilidade fiscal, controle da inflação e câmbio flutuante o Brasil deveria utilizar por algumas décadas porque isso vai prestar um serviço muito bom ao país. Esses instrumentos foram usados no segundo mandato do presidente Fernando Henrique e nós os utilizamos hoje. Não copiamos deles. Eles copiaram do resto do mundo corretamente e nós continuamos fazendo. O regime de metas de inflação não foi uma invenção do Pedro Malan. Foi da Nova Zelândia, em 1992. Se fosse uma invenção do Malan, eu a manteria do mesmo jeito. O câmbio flutuante existe há três décadas. As melhores economias trabalham com isso. No caso da responsabilidade fiscal, o PT sempre foi adepto a ela. Não me incomoda usar instrumentos que foram usados por outros no passado. Só não quero utilizar aqueles que se mostraram ineficientes. Valor: Quais, por exemplo? Palocci: Tabelas, tablitas, controle de preços. O câmbio fixo, que foi usado pelo governo anterior. Valor: O sr. falou da continuidade. O que mudou? Palocci: O nosso ajuste fiscal é muito mais forte, não porque somos diferentes, mas porque o Brasil precisava disso. A atenção da política econômica aos setores mais pobres no processo de crescimento é bastante diferente. Fizemos coisas que mexem com a situação dos pobres. Valor: O quê? Palocci: A bancarização que o governo viabilizou, criando a conta simplificada, que trouxe mais quatro milhões de pessoas para o sistema bancário. Essas pessoas antes tinham acesso apenas ao sistema extra-bancário, pagando juros muito mais altos. Temos o microcrédito, o crédito consignado em folha, o Pronaf (Programa de Agricultura Familiar). Somadas à desoneração tributária dos produtos da cesta básica, e isso aumenta a renda efetiva dos mais pobres, temos crescimento com geração de empregos, aumento da massa salarial e maior inclusão. Valor: Quanto o PIB deverá crescer em 2005? Palocci: Hoje, fala-se em 4%, podendo ser um pouco mais, mas nós não temos meta porque o crescimento depende de muitos fatores.

As pessoas não devem ouvir o conjunto de ministros sobre a economia. Devem ouvir o presidente Lula, que é quem comanda a nau"

Valor: Crescer nesses níveis é uma tendência para os próximos anos ou só para 2005? Palocci: É para os próximos anos. Do ponto de vista econômico, os fundamentos estão muito sólidos. Pela primeira vez, o Brasil está combinando forte equilíbrio fiscal, controle da inflação, contas externas excepcionais, crescimento do PIB com aumento do investimento, geração de empregos. Dados do IBGE mostram que, no último trimestre, o crescimento do investimento foi três vezes maior que o do PIB. Temos que continuar trabalhando. Valor: Em que áreas? Palocci: O governo precisa trabalhar mais em 2005. Precisa consolidar as reformas, acertar os programas sociais para que eles façam efeito no acesso à educação e à saúde, porque isso é importante para a vida das pessoas e para o processo econômico como um todo. Valor: Apesar dos bons resultados, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, disse que é preciso acabar com o pensamento único e discutir juros. Como o sr. vê essas críticas? Palocci: Não percebo uma crítica à política econômica. Ele estava reclamando de vocês (imprensa), não de mim. Se você olhar o conteúdo das críticas, elas são no sentido de que as pessoas querem mais, mais rápido e melhor. Não trato essas críticas como negativas. Elas fazem parte do debate democrático. A construção de políticas pressupõe um nível de divergência, de diferenças de pensamento. Valor: As divergências não dificultam o seu trabalho, na medida em que o sr. administra expectativas e elas podem sinalizar mudança de rumo? Palocci: As pessoas não devem ouvir o conjunto de ministros sobre a economia. Devem ouvir o presidente Lula, que é quem comanda a nau. O presidente está muito firme em relação a essa condução. Quero ser justo com o Zé Dirceu. Ele trabalha em outro ângulo da construção do governo. Valor: Qual ângulo? Palocci: Na atenção aos ministros das várias áreas. No primeiro ano, ele trabalhou sob o ângulo da política, lidando com toda a demanda do Congresso, dos governadores. É natural, olhando o governo sob esse ângulo, que haja pressão sobre a política econômica para atendimento de necessidades. O diálogo que tivemos sempre foi para atender melhor as demandas que existem dentro e fora do governo. Nunca foram críticas no sentido de mudar a política econômica. Não há, nas entrevistas do ministro Dirceu, nenhuma formulação pública, nem reservada, implícita ou explícita, propondo outro caminho para a economia. Valor: O real forte é uma política deliberada do governo? Palocci: A política deliberada não é o real forte. É o câmbio flutuante. As contas externas estão aí para mostrar que essa política presta um bom serviço ao país. Em janeiro de 2003, muitos críticos diziam que, se o câmbio não ficasse em R$ 3,50, o país quebraria em setembro. Os otimistas diziam que quebraria em outubro. Os ainda mais otimistas diziam que isso aconteceria em dezembro. O câmbio veio a R$ 3,00 e não aconteceu nada disso. Pelo contrário. Tivemos o maior saldo comercial dos últimos dez anos. Em 2004, os críticos reiteraram essas críticas, dizendo que, se o câmbio não ficasse acima de R$ 3,00, aconteceriam coisas gravíssimas. Não aconteceu nada de grave. O que aconteceu foi que subiram as exportações, o saldo comercial. Valor: O que explica isso? Palocci: É preciso olhar o conjunto das coisas. Teve a valorização cambial, mas teve também a cobrança de PIS e Cofins sobre as importações. Houve a valorização do real contra o dólar, mas não contra o euro. Há um efeito Brasil. O país está melhorando, então, o câmbio tende a apreciar um pouco. Valor: Como o sr. vê a previsão do ministro Luiz Fernando Furlan de que a valorização do real provocará, em 2005, a diminuição do saldo comercial em 37%? Palocci: Penso que não. O que pode haver é que o saldo pode cair porque o Brasil está crescendo mais. Começamos a importar mais já em 2004. As exportações estão acelerando e as importações um pouco mais. Isso é sinal de crescimento econômico. Se as importações aumentarem mais, é sinal de que a absorção doméstica está crescendo. Valor: A tendência é não ter mais megassuperávits comerciais?

Não há, nas entrevistas do ministro Dirceu, nenhuma formulação pública propondo outro caminho para a economia"

Palocci: No ano que vem, acho que ainda vamos ter um superávit grande. Nos anos seguintes, a tendência será de balança comercial ainda positiva. O Furlan sabe que boa parte desse resultado positivo é resultado do bom trabalho da equipe dele. Acho que ele foi muito rigoroso com ele mesmo nessa avaliação. Dez, quinze anos atrás, exportação no Brasil era sinônimo de oportunidade. Exportavam-se os excedentes. Exportação nunca foi algo para valer. Na medida em que o câmbio é flutuante já há alguns anos e um segundo governo reafirma sempre essa determinação, isso leva as empresas a planejarem a sua vida, tendo uma pauta de exportação como estratégia. O comércio exterior mudou de forma estrutural. O produto brasileiro hoje começa a ser feito pensando-se no exterior. O Brasil começa a agregar valor em seus produtos, desde a sandália de borracha até os aviões. Esse movimento não vai parar. Valor: O governo segue um receituário liberal na política econômica, mas abandonou as privatizações. Elas não são importantes? Palocci: Primeiro, temos que considerar que o principal foi feito pelo governo anterior, que privatizou a siderurgia, a petroquímica, as ferrovias, as telecomunicações, energia. Algumas áreas talvez exijam um olhar mais aberto ao mercado. Por exemplo, o setor de seguros e resseguro. Valor: Além desse setor, o que mais será privatizado? Palocci: Não há nenhuma dificuldade no governo de se discutir (a privatização). Recentemente, por exemplo, privatizamos um pequeno banco (o Banco do Estado do Maranhão) e vamos continuar olhando a oportunidade de seguir privatizando. Não temos interesse em ficar com bancos estaduais, que foram resultados de negociações de dívidas. O próximo a ser vendido deverá ser o Banco do Estado do Ceará. Valor: O componente ideológico do PT não prejudica o debate sobre privatização? Palocci: Existe um componente ideológico não só no PT, mas no país como um todo. Sempre vai estar presente. Isso é legítimo. Não sou estatizante nem privatizante. É preciso olhar o setor e o benefício que traz para o país privatizar ou não. Se trouxer benefício, sou totalmente a favor. Se não, por que fazer? Aí, seria ideológico ao contrário. Privatizar por ideologia. Eu não faria isso. Valor: Como o sr. vê o projeto do deputado Paulo Delgado (PT-MG) que dá ao assalariado liberdade para escolher o banco onde deve ser depositado o seu salário? Palocci: Sou a favor da liberdade total de escolha do trabalhador, assim como da liberdade total de escolha da empresa. Se a empresa tem o benefício de ter o conjunto de sua folha num banco, então, ela deve negociar esse benefício com seus funcionários. Quando fizemos o crédito consignado em folha, isso apareceu. Valor: De que forma? Palocci: Porque as entidades de trabalhadores começaram a perceber que a folha de salários pertence ao trabalhador. Não pertence nem à empresa nem ao banco. Com isso, aumentou a possibilidade de a representação dos trabalhadores negociar a taxa de juros. Isso melhorou os contratos e trouxe os juros do crédito consignado à metade do que eram antes. Se dermos liberdade de escolha, vamos melhorar para todo mundo. Os bancos também vão melhorar, mas eles vão ter que trabalhar mais, correr mais atrás dos clientes, como deve ser um banco. Medidas nesse sentido são muito positivas e terão o nosso total apoio. Reserva de mercado não cai bem para um mercado competitivo. Valor: Os gastos correntes do governo, principalmente com pessoal, cresceram em 2004, enquanto a expansão dos investimentos foi marginal. Por que o ajuste está sendo feito sobre os investimentos? Palocci: Algumas categorias do serviço público acumulavam perdas salariais muito grandes. Então, foi feito um reajuste para categorias grandes. Em proporção do PIB, a variação dessa despesa não foi muito grande. Já os investimentos aumentaram em 2004 e em 2005 vão aumentar ainda mais. O fato é que o Brasil, quando fez investimento pesado em infra-estrutura, tinha nove trabalhadores para cada aposentado. Hoje, tem pouco mais de 1,5. É outro Brasil, com idade populacional mais alta - a população cresce 1,8% ao ano, mas a parcela acima de 65 anos, 4%. Então, é preciso trabalhar muito mais para sustentar o nível de investimentos. Por isso, temos que construir concessões, investimentos privados, PPP (Parcerias Público-Privadas) etc. Voltar ao nível de investimento público em infra-estrutura de 30 anos atrás é um sonho impossível. Valor: Qual seria o nível ideal de investimento público? Palocci: Não há um número ideal. Há três tipos de investimento. Primeiro, aqueles que dão retorno econômico. Nesses, o governo tem que ter um marco regulatório. Não deve se preocupar em pôr dinheiro público. Por exemplo, o setor elétrico, a telefonia. Não há por que o Estado crescer nessas áreas. Pode participar eventualmente de alguns investimentos, mas o principal é encorajar o setor privado, dando segurança ao investidor. Quando você tem um investimento que tem um retorno razoável, mas não o suficiente, para o investidor privado, aí é cabível a PPP. A PPP só tem sentido quando o retorno social do investimento é maior que o retorno econômico. Nesse caso, o Estado completa o retorno para encorajar o investidor privado a entrar. O terceiro caso é aquele que só tem retorno social. Esse tem que estar no orçamento. Valor: Por exemplo? Palocci: Rede de esgoto para as populações pobres. Não há modelo de participação privada que sirva. Isso tem que estar integralmente no orçamento. Alguns perguntam por que não se faz parceria para a construção de casas populares. Porque a população que usa casas de baixo custo não têm como pagar, então, você tem que dar subsídio do orçamento. O que defendemos é que, quando dermos subsídio, devemos fazer isso claramente, sem construir subsídios que não aparecem. Construir um financiamento que aparentemente está resolvendo o problema habitacional dos mais pobres, na verdade, é construir um grande passivo que alguém um dia vai ter que pagar.