Título: Muro avança sem dirimir resistências nas favelas
Autor: Grabois, Ana Paula
Fonte: Valor Econômico, 05/05/2009, Política, p. A6
"Não vejo sentido porque, com esse dinheiro, o governo poderia fazer a minha casa, que é de tábua. O muro é uma prisão, tenho 50 anos aqui, nasci aqui e o morro nunca cresceu para o lado do muro", diz a dona de casa Ana Barbosa da Silva, moradora da favela Dona Marta, onde o governo do Estado do Rio começou a construir muros de 3 metros de altura com o intuito de evitar o avanço das moradias sobre a Mata Atlântica. Dois meses depois do início das obras, o projeto de erguer paredões de concreto em 13 favelas do Rio por iniciativa do governador Sérgio Cabral (PMDB) divide a população que vive nessas comunidades.
O relato dos moradores do Dona Marta e da Rocinha indica que a prioridade é outra - todos querem melhorar as condições de vida locais. As duas favelas sofrem com a precariedade das habitações, da coleta de lixo e do saneamento. Nas ruas e vielas, esgoto e lixo são presenças constantes. Essa percepção foi captada em levantamento do Datafolha no início de abril. A pesquisa (com margem de erro de quatro pontos percentuais para mais ou para menos) mostrou empate técnico entre os entrevistados da cidade sobre a colocação dos muros.
Na favela Dona Marta, encravada no bairro de Botafogo, os 634 metros de muros irão consumir R$ 961 mil. "É só para gastar dinheiro, não precisa do muro", diz um morador que não quis se identificar. No total, o governo do Estado investirá R$ 41 milhões até o fim do ano que vem na construção de 14,6 quilômetros de muros em 12 favelas da zona sul, onde estão concentrados os bairros mais ricos da cidade, e em outra favela em torno do parque estadual da Pedra Branca, área de proteção ambiental da zona oeste.
No Dona Marta, é generalizada a objeção ao muro, em construção em uma lateral do morro, na divisa com o terreno do Palácio da Cidade, local para eventos da prefeitura. Na outra lateral, um teleférico recém-inaugurado já estabelece um limite. Junto com a construção do muro, o governo Cabral realiza obras de urbanização, saneamento e constrói prédios de apartamentos dentro da favela, hoje sem a presença do tráfico de drogas armado e sob ocupação da polícia desde dezembro. Todo o projeto no Dona Marta prevê gastos de R$ 38,4 milhões, com a participação do governo federal. Os apartamentos em construção, no entanto, serão destinados apenas para quem vive em área de risco.
O presidente da Associação de Moradores do Dona Marta, José Mário Hilário, é um dos poucos a endossar o argumento do governo para erguer os muros - conter o crescimento das favelas para proteger o meio ambiente. "É ecolimite, mas sou a favor mesmo de moradias dignas", diz Hilário. O relojoeiro José Renato Silva, desde a infância no Dona Marta, diz que a favela não cresceu nos últimos anos. "Ao contrário, está diminuindo", disse Silva, para quem o dinheiro poderia ser usado para construir ou melhorar casas do local.
Na Rocinha, a maior favela do Rio, com 56 mil habitantes segundo o Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a associação de moradores e algumas ONGs são contra o muro, mas há moradores favoráveis. Sob o controle territorial do tráfico de drogas armado há anos, o que significa conviver com invasões de facções rivais e conflitos com a polícia a céu aberto, moradores falam que o muro pode conter a violência. "Vai ficar mais seguro, ninguém vai mais fugir para o mato", disse um dos habitantes. "É mais segurança porque aqui tem roubo e assalto. E não vai ter mais invasão pela mata", afirmou outro.
Radicalmente contra o muro, o presidente da Associação de Moradores da Rocinha, Antonio Ferreira de Mello, o Xaolin, pretende fazer um movimento contra os muros nas favelas. "PAC sim, muro não. Esse é o slogan", disse. As obras, no entanto, estão previstas para começar hoje. Xaolin compara os muros aos tempos medievais e diz que eles segregam ainda mais o morro do asfalto. "É um atraso para a cidade toda, a nossa luta é pela integração, mas o muro consolida o apartheid social", afirmou. Xaolin e outros representantes da Federação das Associações de Moradores de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) já se reuniram com o vice-governador e secretário estadual de Obras, Luiz Fernando Pezão, para tentar uma conversa com o governador Cabral e organizam ato contra o muro para a próxima semana.
Essas reuniões não estão sendo intermediadas por vereadores ou deputados ligados às favelas. Os partidos políticos estão totalmente à margem da discussão. A vereadora do PSDB Andrea Gouvêa Vieira, por exemplo, é favorável ao muro, mas diz não haver unanimidade entre os tucanos sobre o tema. "Não discutimos para fechar uma posição", disse. Andrea acha o muro "absolutamente razoável". "O muro não divide a cidade nem impede o ir e vir da favela, é um muro que protege mata, não consigo ver o muro como algo ruim, discriminatório."
Nem o PT, que a partir do programa federal "Minha Casa, Minha Vida", teria um discurso para se contrapor ao muro, de uma política habitacional alternativa, tem voz ativa na discussão. À exceção do secretário de Habitação do município, Jorge Bittar (PT), contrário ao muro, o partido tem se mantido apagado na discussão.
A Rocinha foi uma das maiores beneficiadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Estado, com orçamento de R$ 180 milhões. A favela vai ganhar obras de urbanização, saneamento, anel viário, centros de esportes e de cultura, creche e plano inclinado e novos apartamentos para quem vive em áreas de risco. O PAC também vai incluir a melhoria de 5 mil unidades habitacionais, número insuficiente para a dimensão da Rocinha. De acordo o Censo 2000, existiam 17 mil casas, mas levantamento da Light (distribuidora de energia da cidade) de 2002 indicava 25 mil lares. Atualmente, a empresa de energia estima 28 mil domicílios na Rocinha.
No governo estadual, o responsável pelos muros, Ícaro Moreno, presidente da Empresa de Obras Públicas (Emop), restringe a obra à preocupação ambiental. "A favela vem crescendo sobre a Mata Atlântica", afirmou. Diversos governos tentaram, desde o início da década de 90, colocar limites ambientais à expansão das favelas, como cabos de aço, mas, segundo Moreno, as iniciativas não deram certo. "O governador Sérgio Cabral encarou o problema de frente. As favelas estão emendando umas nas outras e avançando sobre a mata", diz.
Moreno não vê nenhuma relação do muro com a violência que desce e ameaça o asfalto ou segregação. "Isso é romantismo. Quando se compra um terreno ou uma casa, tem um muro", disse. A Emop estuda ainda implementar a segunda fase de muros em favelas da zona norte do Rio.
Na visão do urbanista e arquiteto Manoel Ribeiro, que participou do projeto de urbanização Favela-Bairro no anos 90, os muros acabarão servindo como fundos de novas casas. Muros ou cabos de aço, na sua avaliação, nada representam se os moradores não se interessarem por exercer controle sobre novas ocupações. "Caso contrário, as expansões continuarão a se dar na medida da expansão da pobreza. Muros representam uma tentativa de esconder o "outro", de se proteger do diferente, a quem se atribui a responsabilidade pela violência e pela insegurança", disse o urbanista.