Título: Responsabilidade fiscal, muito por fazer
Autor: R. Afonso,José Roberto ; Nóbrega , Marcos
Fonte: Valor Econômico, 07/05/2009, Opinião, p. A10

As despesas correntes num patamar tão alto não mais poderão ser lastreadas pela receita que tende a diminuir

Nove anos se passaram da entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Apesar dos enormes e inegáveis avanços, ela não pode ser vista como obra pronta e acabada. Importantes instituições e limites até hoje não foram regulamentadas. Algumas normas têm efeito legal mas não prático, até porque algumas foram maquiadas.

Nos últimos anos, instigados por uma conjuntura internacional favorável, é notório que o país realizou uma política fiscal expansionista. O cenário mudou radicalmente: as despesas correntes num patamar tão alto não mais poderão ser lastreadas pela receita que tende a diminuir, seja pelo efeito da recessão, seja pela concessão indiscriminada de incentivos. Muito se fala de estados e municípios mas é um erro focar em quem não consegue gastar muito mais do que arrecada, até por falta de opção (de quem os financie), e estão cortando gastos: por princípio, o corte é a diferença entre as quedas de 0,46% do PIB das transferências federais obrigatórias e de 0,37% do PIB do resultado primário, entre o primeiro trimestre de 2009 e o de 2008 (pois receitas próprias não cresceram). O problema macroeconômico está na União: aumentou em 2,3% do PIB sua despesa primária (1% explicado por investimentos) e diminuiu em 3,1% do PIB o seu superávit primário, em igual período.

Os números são eloquentes e inegáveis - acabaram os tempos de carga tributária abundante e crescente e o desafio macroeconômico está endereçado ao governo federal. À parte a premência em repensar a trajetória explosiva e de má qualidade do gasto público, o momento também é propício para retomar o processo de consolidação e modernização das instituições que assegure a sustentabilidade fiscal no longo prazo. Um bom caminho é completar o que ficou inacabado na LRF e discutir o endurecimento das regras que tem sido insuficientes ou mesmo falhas.

O maior lapso envolve a dívida pública. A União responde por dois terços da dívida pública líquida (ou mais de 90% da bruta) e até hoje não está sujeita a qualquer limite, nem para sua dívida consolidada (competência exclusiva do Senado), muito menos para sua dívida mobiliária (lei ordinária). Nada justifica que o ente mais importante da Federação não esteja sujeito a nenhum limite. Ademais, o presidente da República - a quem a Constituição delega a competência exclusiva para propor ao Senado a fixação ou a alteração do limite da dívida consolidada (art. 30, §5º da LRF) - deveria se manifestar anualmente sobre a manutenção ou a proposição de mudanças nos limites e nas condições aplicadas à dívida consolidada e nunca fez isso. Aliás, o mesmo presidente também não assina o Relatório de Gestão Fiscal (quadrimestral) no qual atesta que o Executivo Federal cumpre os limites previstos na LRF (como determina o seu art. 54, parágrafo único, III), embora o mesmo seja assinado pelos chefes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Isto tudo não são apenas detalhes burocráticos: tais omissões ferem claramente ditames legais e sinalizam descaso - com outras esferas de governo, com outros Poderes e com a própria sociedade.

A LRF também contempla a necessidade de instituição do Conselho de Gestão Fiscal, que tem como objetivos desde a classificação e padronização das contas públicas até a transparência fiscal, sendo composto de representantes de todos os governos e todos os poderes. Embora a esfera federal seja pródiga e farta de conselhos, dispondo sobre os mais variados assuntos e com composições as mais abrangentes, causa espécie que até hoje não tenha sido votado (e sequer discutido) o projeto de lei, enviado ao Congresso poucos meses depois de editada a LRF, para definir a composição e o funcionamento do conselho fiscal.

O que a mídia tem noticiado há tempos respeita à maquiagem das despesas com pessoal e causa espécie a leniência dos órgãos de controle e do próprio governo federal que não reagem às distorções. Alguns estados e municípios não computam como gasto com pessoal a parcela da folha salarial correspondente ao IR retido na fonte dos respectivos servidores que, por determinação constitucional, constitui receita própria da respectiva administração. Outros excluem dessa despesa os gastos com inativos e pensionistas. Na essência, a ideia é que aposentadorias e pensões constituem um gasto com previdência (como de fato é) e tal é uma função de responsabilidade exclusiva do Poder Executivo, logo, não precisam ser computados na soma de despesas com pessoal dos outros poderes. Quem assim interpreta não se preocupa em assegurar que o gasto esteja mesmo computado no outro Poder - o que provavelmente levaria ele a extrapolar o seu subteto. O pior ocorre quando o Executivo também exclui os gastos com seus servidores inativos e, aí, o montante da despesa com pessoal submetida ao controle da LRF se limita apenas a uma parcela do gasto - aquela dos servidores em atividade.

Mais grave que tentar ludibriar a lei é não cumprir os ditames da Constituição que determina (art. 169, §3º) o corte de pelo menos 20% dos gastos com cargos comissionados e funções gratificadas caso as despesas de pessoal estejam extrapoladas. Isso não tem ocorrido, por exemplo, no Ministério Público do Distrito Federal que, extrapolando seus gastos com pessoal e apresentando grande quantidade de cargos comissionados, não sofreu nenhum corte de despesas por parte da União.

Já sobre o que mudar na LRF para torná-la ainda mais austera, chamamos a atenção para as regras que ordenam a criação de gastos permanentes, inclusive renúncia de receita. Falhou o princípio da compensação - só se cria gasto novo se houver corte de outro ou aumento de receita. Até se poderia adotar limites também para despesas correntes, porém, é mais eficiente limitar a criação de novos compromissos sem que se prove a viabilidade técnica e orçamentária. Isto remete para outra mudança legal - a urgência de se aprovar a lei complementar que regula os orçamentos, conquanto a atual (Lei 4320 de 1964), recepcionada pela Constituição, resta anacrônica e incapaz de normatizar um processo orçamentário mais moderno, eficaz e transparente.

Crise enseja oportunidades e, no campo das finanças públicas, a melhor delas é a modernização das instituições fiscais do país. Como se vê, não falta o que mudar e melhorar.

José Roberto R. Afonso é economista, mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando da Universidade Estadual de Campinas.

Marcos Nóbrega é pós doutor pela Harvard Law School. professor da Universidade Federal de Pernambuco e conselheiro substituto do TCE-PE.