Título: Inflação vai desafiar política de juro zero do Fed, diz Phelps
Autor: Adachi, Vanessa
Fonte: Valor Econômico, 07/05/2009, Especial, p. A12

O vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2006, Edmund Phelps, levou 45 minutos e foi atendido por dois garçons diferentes para conseguir comer um sanduíche de queijo quente no pão de forma, ontem à tarde, em São Paulo. Foi, provavelmente, o mais demorado sanduíche de queijo de seus 75 anos de vida.

Quando finalmente conseguiu colocar as mãos no sanduíche, reagiu com felicidade e pediu uma segunda Coca-Cola. Eram mais de 14h30, ele ainda não havia almoçado e se preparava para fazer uma apresentação de 40 minutos no II Fórum Internacional de Comunicação e Sustentabilidade. Além de Phelps, o evento teve a participação de dois vencedores do Nobel da Paz, David Trimble (1998) e Mohan Munasinghe (2007).

Ninguém espera encontrar o ganhador de um Nobel nessas condições. A nobreza do título sugere uma situação com mais pompa e circunstância. Mas foi assim, sentado à mesa do barulhento restaurante do saguão do hotel Holiday Inn do Centro de Convenções do Anhembi, na zona Norte de São Paulo, que Phelps conversou com a reportagem do Valor, entre uma mordida e outra no sanduíche, devorado em poucos minutos.

Bem humorado e descontraído, Phelps fez uma porção de comentários irônicos e contou uma piada. Fazendo algumas longas pausas para refletir, falou de política monetária, crise econômica e dos cem primeiros dias do governo do presidente americano Barack Obama. O economista americano, que ganhou o Nobel por ter derrubado a tese de que a inflação poderia gerar emprego, acha que o Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, não poderá errar a mão no momento em que o otimismo de consumidores e empresários começar a pressionar por juros mais altos na economia. "Se o Fed lutar contra isso, mantendo os juros onde estão, começaremos a ver uma aceleração da inflação."

Phelps acredita que a taxa natural de desemprego dos EUA aumentou por questões estruturais, como a excessiva alavancagem dos bancos e a preferência dos fundos hedge por ativos líquidos em vez de investimentos produtivos. Em sua visão, a taxa natural tenderá para algo em torno de 6,5%, um ponto percentual acima do que era antes do "boom" da internet e da construção civil. Por isso, em sua opinião, o Fed deve tomar cuidado para não se orientar equivocadamente ao calibrar os juros para reduzir o desemprego, sob risco de acelerar a inflação.

Phelps, que é casado com uma argentina há mais de 30 anos e esteve no Brasil "seis a sete vezes só nos últimos dois anos", considera o Banco Central brasileiro um dos mais capazes e de julgamento mais sólido do mundo. "Não acho que os brasileiros deveriam ser muito duros com o Banco Central. Numa situação como a atual, é impossível fazer todo mundo feliz."

O ganhador do Nobel está satisfeito com os cem primeiros dias do governo de Barack Obama, mas criticou a lentidão para "colocar os bancos em pé e emprestando".

Para ele, o empréstimo bancário é a chave para fazer as economias americana e europeia recobrarem o dinamismo perdido. Por isso, Phelps está trabalhando em uma proposta de criação de uma nova classe de bancos, voltados exclusivamente para o financiamento de projetos de inovação das empresas. Esses bancos, acredita ele, deveriam contar com subsídio do governo.

Ironicamente, Phelps tem trabalhado nesse projeto com Leo Tilman, ex-estrategista chefe do Bear Sterns, justamente um dos bancos de investimento que colapsou com a crise das hipotecas. "Talvez você já tenha ouvido falar do Bear Sterns", disse, às gargalhadas, antes de prosseguir com suas ideias.

Valor: O sr. escreveu um artigo em que afirma que a taxa natural de desemprego nos Estados Unidos mudou. Aumentou por causa de mudanças estruturais. Então, o sr. acha que a política monetária do Federal Reserve está equivocada? Teremos inflação no futuro?

Edmund Phelps: Acho que nós gostaríamos de ver uma recuperação da taxa de desemprego, uma queda do desemprego. O perigo é essa recuperação ocorrer muito rapidamente, as autoridades monetárias empurrarem isso muito rapidamente, o que causaria inflação. Um dos problemas é que, uma vez que uma vez que os consumidores se tornem mais otimistas e os empresários enxerguem melhores oportunidades de investimento, então as taxas de juro tenderão a subir. O que nós gostaríamos de ver é o banco central [o Fed] subindo os juros de forma correspondente para evitar uma subida da taxa de inflação.

O juro não poderá ficar baixas para sempre, terá que subir logo. Haverá forças do mercado empurrando as taxas de juro para cima. Se o Federal Reserve lutar contra isso, mantendo os juros onde estão, começaremos a ver uma aceleração da inflação. E isso não será bom. Será pior se tivermos um sobreposição de inflação e alto desemprego.

Valor: Mas o sr. não acha que há sinais contrários? Por exemplo, uma reportagem do "Financial Times" na semana passada falava de uma análise interna do Fed indicando que, pela chamada regra de Taylor (que relaciona a taxa de juro apropriada ao desemprego e à inflação), as taxas de juro deveriam estar 5% negativas agora para recuperar o emprego. Isso sugere que o Fed pode pensar diferente do sr.?

Phelps: É um ótimo ponto. Eu vi no jornal também e naquele momento eu fiquei sem saber como reagir a isso [risos].

Valor: E agora?

Phelps: Agora eu vejo que só mostra a utilidade limitada da regra de Taylor. Bem, não estou dizendo que o Fed deveria elevar os juros hoje. Vamos deixar a regra de Taylor decidir os juros hoje. O que estou dizendo é que, quando a economia começar a se recuperar e os consumidores e empresários se sentirem mais confiantes, haverá tremendas pressões para elevar os juros. Nesse momento é melhor esquecer a regra de Taylor. É melhor que o Fed responda elevando os juros.

Valor: Só para esclarecer. Neste momento o sr. não acredita que o Fed deveria adotar uma política monetária diferente da atual, de juro zero?

Phelps: Estou perfeitamente satisfeito com as taxas superbaixas no momento presente. Mas é terrivelmente importante que o Fed esteja pronto para dar um salto nas taxas quando a inflação se acelerar.

Valor: O sr. vê algum sinal de recuperação econômica agora?

Phelps: Eu não vivo disso [de fazer previsões econômicas]. [Risos]. Eu vou ficar com as previsões do Ben Bernanke [presidente do Fed] de que ao final do ano o PIB começará a crescer novamente. Parece correto. Eu sou um dos economistas mais otimistas nos Estados Unidos. Muitos agora estão falando que a taxa de desemprego irá a 11%, 12% e eu acho que ficará entre 8% e 10%. Agora está em 8,5% e as apostas são de que deve ir a 8,9%, mas nós realmente não sabemos. Mas eu espero que ela não suba acima de 10%, estou bem convencido.

Valor: O sr. diz que há uma falta de dinamismo nas economias dos EUA e da Europa e que a retomada de empréstimos bancários é indispensável para impulsionar o dinamismo. Qual a sua proposta?

Phelps: Minha proposta é a criação de uma nova classe de bancos, voltados a financiar investimentos inovadores no setor empresarial. Nos EUA, quase todo mundo tem direito a subsídio: a agricultura tem, os setores de exportação e importação têm, a indústria da construção civil tem subsídios gigantescos. As pessoas têm subsídios para ter filhos.

Valor: Então o sr. sugere que essa nova classe de bancos receba subsídios do governo?

Phelps: Sim. Poderia ser um subsídio para cada dólar de empréstimo que eles façam, por exemplo. Essa ideia ainda está nascendo e os detalhes ainda precisam ser trabalhados

Valor: Mais alguém concorda com o sr.?

Phelps: Joseph Stiglitz gosta da ideia. E tenho trabalhado ativamente nessa ideia com Leo Tilman, que era estrategista-chefe do Bear Sterns. Talvez você já tenha ouvido falar do Bear Sterns [gargalhadas].

Valor: E quanto ao governo?

Phelps: Ainda não fizemos uma proposta ao governo. Talvez eu deva correr para apresentá-la antes que o governo gaste todo o dinheiro [risos].

Valor: Em que ponto da crise o sr. acha que estamos?

Phelps: Estamos próximos do fundo.

Valor: Mas estamos antes de atingir o fundo ou acabamos de passar o fundo do poço?

Phelps: Talvez o fundo do poço tenha sido atingido semana passada e não nos demos conta. Talvez, quando os dados forem revisados, a gente se dê conta.

Valor: O sr. acredita em recuperação de agora em diante?

Phelps: Acredito em retomada, mas apenas parcial. Admitindo que, na metade dos anos 90, antes do boom da internet e da construção civil, a taxa natural de desemprego era de 5,5%. Temos muitas evidências para acreditar que esse é o número correto, mais ou menos. Bem, temo que conforme a recuperação avance, tenderemos para uma taxa natural de 6,5%, ou talvez 6%. No fim dos anos 90 o boom resultou de um extraordinário desenvolvimento do comércio na internet. Será um milagre se tivermos algo assim nos próximos dois anos.

Mas, na ausência disso, acho que depois de um ímpeto inicial a recuperação vai perder velocidade e tenderemos a ver uma taxa de desemprego se estabilizando em torno de 6% a 6,5%.

Valor: E a respeito dos cem primeiros dias de governo do presidente Barack Obama. O sr. acha que ele adotou as medidas corretas para superar a crise?

Phelps: Achei que o pacote de estímulo foi muito bom em evitar algumas armadilhas. O plano não jogou simplesmente dinheiro para as famílias. Foi bom por enfatizar os projetos de infraestrutura. Apesar de que muitos desses projetos não criarão empregos. Eles incluíram projetos de alta tecnologia do Vale do Silício, que não criarão empregos. Fizeram um ótimo trabalho. Mas é surpreendente quanto tempo eles estão levando para alcançar algum tipo de consenso dentro do governo sobre como colocar os bancos de pé e emprestando.

Valor: Estão demorando demais e há um risco?

Phelps: Sim. Obama venceu a eleição em novembro, já estamos em maio e nenhuma ação foi tomada. Os bancos ainda não estão fazendo muitos empréstimos.

O governo tomou iniciativas para garantir dívidas de vários tipos e fazer o mercado de títulos de dívida andar de novo. Mas a minha maior preocupação com Obama é que ele imagina que conseguirá tornar a economia americana mais inovadora novamente por meio de um grupo de iniciativas governamentais nas áreas de saúde, energia e mudanças climáticas. E a minha impressão é que essa é uma ideia perigosa. Pode funcionar, mas estou cético porque, antes de tudo, não me parece uma boa ideia permitir que agências governamentais tomem decisões envolvendo inovação, porque elas não estão próximas o suficiente da realidade comercial, dos aspectos práticos envolvidos. A tomada de decisão será muito politizada e com falta de informações práticas.

Além disso, muitas empresas do setor privado estarão trabalhando sob contratos com o governo para fornecer várias coisas. Quando a empresa está inovando para os consumidores, você tem 200 milhões de consumidores, todos diferentes uns dos outros. E você acha um nicho de consumidores que gosta do seu produto, da sua inovação. Com o governo, você só tem que se preocupar que o governo goste do seu produto.

Valor: É um cliente apenas.

Phelps: Exato. A economia de um cliente. Acho que vou adotar essa expressão.

Valor: O sr. segue a economia brasileira de perto?

Phelps: De vez em quando. Venho ao Brasil com frequência. Estive no Rio um verão inteiro, mas muito, muito no passado. Não vou dizer quando. Se te disser o ano, você não vai acreditar. [risos]

Valor: O sr. acha que o Banco Central brasileiro está fazendo um bom trabalho agora?

Phelps: Comparado a quê? [risos] Sabe, há uma velha piada nos EUA. Dois homens estão conversando e um pergunta ao outro: como está sua mulher? E o outro responde: comparado a quê? [Gargalhadas] Na verdade, acho que o Banco Central brasileiro é provavelmente um dos que possui julgamento mais sólido, um dos mais capazes entre os bancos centrais. Não acho que os brasileiros deveriam ser muito duros com o Banco Central. Numa situação como a atual, é impossível fazer todo mundo feliz.

Valor: Muitos economistas acreditam que o Brasil será um dos primeiros países a sair da crise. O sr. concorda?

Phelps: Parece que sim. Provavelmente o preço das commodities caiu demais, então há uma recuperação aí, o Brasil se beneficiará. E a taxa de crescimento é boa.

Valor: Mas estamos em recessão agora.

Phelps: Mas é uma economia que parece que está começando a se recuperar. É muito melhor do que uma economia que está estabilizada na baixa. Mas o Brasil tem muitas oportunidades de fazer melhorias estruturais. Tenho certeza de que o país poderia ter um sistema bancário melhor, um sistema bancário que atenda melhor o setor empresarial.

Valor: O país tem um sistema bancário forte, certo? Mas também muito conservador.

Phelps: Sim, foi isso que quis dizer. Vocês chamam isso de "forte"? [risos]

Valor: Não é uma qualidade para o sr.? É um defeito?

Phelps: Não, não é uma boa qualidade.

Valor: Um ano atrás o sr. disse que o câmbio valorizado podia ajudar o Brasil, estimulando a produção doméstica a criando empregos. Agora tudo mudou, tivemos uma grande desvalorização. Como o sr. vê esse cenário?

Phelps: Há muitos efeitos da desvalorização ou apreciação de uma moeda. As pessoas tendem a olhar apenas o que o câmbio faz para as exportações. Mas há efeitos no custo dos materiais importados, tem efeitos no custo de produção de nossos rivais em outros países. A desvalorização de uma moeda é como um aumento tarifário. Coloca os estrangeiros em grande desvantagem. Se não gosta de tarifas, não deveria gostar de depreciação da moeda.

Valor: E a respeito do prêmio de US$ 1,4 milhão que o sr. ganhou pelo Nobel de Economia? O sr. perdeu alguma coisa dele com a crise?

Phelps: Não, nós não perdemos nem um centavo. Colocamos no banco. Depois ficamos preocupados com o banco [gargalhadas].

Valor: Qual o banco?

Phelps: Não vou te contar ou minha esposa ficará muito brava. Vai achar que estou espalhando minhas informações pessoais por aí.

Valor: Mas é um banco forte?

Phelps: Nós achávamos que era um banco forte. [risos] Mas nós colocamos o dinheiro em títulos do governo.

Valor: Então agora vocês não estão ganhando muito dinheiro.

Phelps: Não. Mas também não perdemos nada. Quantas pessoas você conhece que não perderam um centavo nessa crise?