Título: O Supremo, o dissenso e o medo da liberdade
Autor: Stanziola Vieira , Renato
Fonte: Valor Econômico, 07/04/2009, Legislação, p. E1
Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) exerce a função de zelar autoritativamente pela guarda da Constituição Federal, é natural que não só a comunidade jurídica mas todos nós, destinatários de sua interpretação, manifestemo-nos. E não foi diferente com o julgamento do Habeas Corpus nº 84.078, relatado pelo ministro Eros Grau, quando o pleno do Supremo disse - com a pá de cal que permeia a decisão, que se impõe pela excelência dos argumentos e com o risco (calculado numa democracia em que alguém dá a última decisão) natural de errar por último - que prisão que anteceda à decisão em processo penal da qual não caiba recurso algum é excepcional.
O Supremo não errou. A democracia tolera entendimentos de diversos matizes, aclamando ou não decisões. É da discordância da voz hoje vencedora que germina a possível aceitação da tese antagônica e as vozes que poderão amadurecer nova concepção do justo. A democracia, diz Cass Sustein, precisa de dissenso. O dissenso frutuoso campeia na medida do juridicamente admissível. Eis aqui o ponto fundamental assumido pela maioria dos ministros do Supremo, salutar para alguns e dissentido por outros: não é possível - vá lá, peque-se pelo excesso - dissenso quanto à taxatividade constitucional que edifica a presunção do estado de inocência à garantia fundamental, conforme estabelece o inciso LVII do artigo 5º da Constituição. Tal previsão deve ter consequências, sob pena de o texto ser inefetivo, pois o processo penal é direito constitucional concretizado.
Disse, com carradas de razão, o ministro relator: "Quem lê o texto constitucional em juízo perfeito sabe que a Constituição assegura que nem a lei, nem qualquer decisão judicial imponham ao réu alguma sanção antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória." Da acertada premissa vem - ao contrário de uma apressada distorção quanto à generalidade dos destinatários da norma, que vem da interpretação do texto legal - que os extratos sociais não são levados em conta. Não se trata de privilegiar ou decidir a questão constitucional de acordo com aplicação classista da lei. A igualdade da e na lei não permitiria.
Bons advogados sabem usar a Constituição e a lei em seu favor. Que mal há nisso? Se o Estado brasileiro peca pela insuficiência de dotar as defensorias públicas de estrutura que a tanto as possibilite atuar, a crítica que se tem visto é um contrassenso. Mira-se nos poucos mas se atingem muitos. Usa-se o argumento classista ao avesso de que poucos poderiam se valer dos recursos dispostos na ordem jurídica, quando - e não se desconheça isso - a consequência desastrosa do amesquinhamento da garantia é o aniquilamento do direito dos milhares menos afortunados. Não é da demonização de poucos com trágica consequência para todos que se constrói justiça.
E não será com olhos de medição de temor difundido em opiniões publicadas - travestidas ou não de opinião pública que amiúde difundem com rentável alarmismo a periclitante situação de segurança pública - que o Supremo decidirá com mais boa vontade para direitos fundamentais. Claro que existem critérios, barômetros que auxiliem atingir-se o justo. Mas não é a acertada decisão, insista-se, que patrocina o medo difuso - será por costume de tanto repetir o bordão? - da impunidade. O barômetro não é a imprensa ou outro, é a Constituição. Não se pode ter medo da liberdade e nem obedecer a lei maior com cabeça baixa.
A preocupação em dar concretude às previsões constitucionais, mormente aquelas que digam com a liberdade, na premissa de que a maré da repressão penal não pode solapar garantia do Estado de direito, não precisaria ser elogiada ao provar responsabilidade na judicatura. Mas, vá lá: a decisão é corajosa. Corajosa porque abre os olhos para desnudar outra verdade dita pelo relator: "Nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito." O que há de classista nessa apodídica afirmativa? Em que ela patrocina a impunidade? Sério processualista penal, Figueiredo Dias repetiu a lição segundo a qual a democracia de um sistema se vê pelas disposições de seu código de processo penal. Onde há mais liberdade e se respeitam os direitos das pessoas no processo há democracia; a tirania vem, disfarçada ou não, do outro lado. Não foi Evandro Lins e Silva quem, em uma passagem do relator, ponderou que "na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente"?
Antes de se usar falaciosos ou redundantes argumentos de que "os direitos não são absolutos", o "interesse público" sempre prevalece sobre o "particular" (sempre?), a preocupação é antecedente: respeitem-se os direitos primeiro. Quando há escolha constitucional não cabe sofisma.
Sobre o risco de intelecções que se têm visto difundir-se à luz das particularidades recursais do sistema jurídico brasileiro quando cotejado com outros, a decisão não foi fruto de um voluntarismo dos ministros , mas uma escolha do constituinte. Dizia Cícero: suporta a lei que fizeste! Não há o que ali se criticar também sob esse aspecto, até porque a corte viu o caminho para o legislador - se adequado e sem solapar direitos e garantias - alterar a lei. Com o ministro relator: ou se obedece à Constituição e suas consequências ou "melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete!"
Para afastar dúvidas: seguiram-se precedentes afetos ao respeito ao direito fundamental da propriedade. Por que não aplicar os precedentes afetos ao direito de maior dignidade, que é a liberdade? A decisão da corte é um alento. E, espera-se, possa chamar a atenção para novas decorrências de sua melhor intelecção, pois, haja ou não dissenso, o respeito à presunção constitucional prestigiada vale para medidas cautelares patrimoniais e deve abranger também situações em que amiúde se vê licenciamentos de cargos na pendência da causa penal. A Constituição e a norma que extrai de sua interpretação, afinal, não atinge a todos? Pena que ministros que foram vencidos ou fizeram ressalvas à maioria não publicaram seus entendimentos. A postura silenciosa ou resignada não parece salutar - até para gerar dissenso. Mas isso é outro assunto.
Renato Stanziola Vieira é advogado criminalista, sócio do escritório Andre Kehdi & Renato Vieira Advogados, mestre em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
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