Título: Eletrobrás repaginada
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Fonte: Valor Econômico, 13/05/2009, EU & Investimentos, p. D1

Maior empresa de geração e transmissão do setor elétrico brasileiro, a Eletrobrás enfrenta atualmente o dilema de tentar se transformar na "Petrobras do setor elétrico", nas palavras do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao mesmo tempo em que enfrenta dificuldades criadas, em alguns casos, pelo próprio governo federal.

A empresa, na qual a União Federal detém 54% das ações com direito a voto, convive com problemas de imagem que lhe deixam pouco espaço para alcançar a independência operacional pretendida. A empresa também não está imune ao uso político. Furnas, uma das suas controladas, é hoje um reduto do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que nomeou o ex-presidente da empresa e ex-prefeito do Rio Luiz Paulo Conde e está fazendo grande pressão para assumir o comando da Fundação Real Grandeza, fundo de pensão dos funcionários daquela estatal.

Mesmo assim, o Programa de Ações Estratégicas da Eletrobrás para o período 2009-2012, que prevê investimentos de R$ 30,2 bilhões, pretende elevar a pontuação da holding no Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da Bovespa ainda neste ano e, até 2012, conseguir migrar para o nível 2 de governança empresarial da BMF&Bovespa e se listar no Dow Jones Sustainability Index.

Será um um longo caminho até lá. A dificuldade de comparação entre a Petrobras e a Eletrobrás começa nas demonstrações financeiras. A Petrobras opera em 19 países e quatro continentes, tem 308 empresas, sendo 185 empresas controladas, 39 coligadas, 65 controladas em conjunto com sócios e 19 sociedades de propósito específico (SPEs). Apesar da complexidade, é um balanço "limpo", sem ressalvas (que denotam erros) do auditor independente. Já as demonstrações da Eletrobrás, com 15 subsidiárias no país incluindo as distribuidoras que foram federalizadas, traz ressalta por falta de auditoria de empresas coligadas, o equivalente a R$ 1,5 bilhão em investimento no fim de 2008.

Para convencer os investidores da mudança, a empresa tem que começar pelo balanço, mas não é só isso. A Eletrobrás vem sendo cobrada por investidores sobre o pagamento de dividendos retidos nos últimos 30 anos, que hoje somam R$ 10 bilhões, enquanto se prepara para pagar R$ 1,7 bilhão em dividendos correntes em 2009, fruto do lucro de R$ 6,1 bilhões realizado no ano passado.

São comuns as críticas à sua governança e transparência. Relatórios recentes obtidos pelo Valor de duas consultorias internacionais para assuntos de governança - RiskMetrics e Glass, Lewis & Co. - apontam falta de transparência nas decisões e pouca independência tanto dos gestores quanto dos membros do conselho de administração, que tem representantes do gabinete da Presidência da República, dos ministérios de Minas e Energia, Planejamento e do Tesouro Nacional, além do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

A sugestão era que os minoritários estrangeiros votassem contra ou se abstivessem na assembleia realizada na semana passada. A Eletrobrás tem recibos de ação (ADR) no mercado americano, o que permite a participação dos estrangeiros.

A retenção dos dividendos passados, que correspondem ao valor do caixa da companhia (sem contar os R$ 3,5 bilhões das controladas), levou o fundo de investimentos americano Brandes, em 2008, a entrar com uma representação contra a estatal na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e com um protesto judicial.

O órgão regulador concluiu que a retenção de dividendos para realizar investimentos é incompatível com o artigo 198 da Lei das Sociedades por Ações, mas que "não tem competência legal para determinar o pagamento de dividendos". Ainda assim, iniciou procedimento para analisar irregularidades na condução do assunto pela direção da empresa.

A atual proposta da estatal para pagamento desses dividendos prevê um aporte de capital imediato da União, para evitar sua descapitalização. Por esse desenho, ela poderia pagar R$ 2 bilhões para os minoritários detentores de ações ordinárias, R$ 1,5 bilhão para o BNDES, R$ 1 bilhão para o Fundo Nacional de Desestatização (FND) e para o Fundo Garantidor de Participações Público-Privadas (FGP). Outros R$ 5,5 bilhões cabem à Secretaria do Tesouro Nacional.

Segundo Astrogildo Quental, diretor financeiro da Eletrobrás, estão em análise agora duas operações simultâneas, com o dividendo pago voltando para a companhia em forma de aumento de capital no momento seguinte. Por esse desenho, o Tesouro e os fundos receberiam R$ 6,5 bilhões e capitalizariam R$ 4,5 bilhões na estatal, o que resultaria em desembolso líquido de R$ 2 bilhões da Eletrobrás para eles. Nesse caso, o caixa da estatal cai de R$ 10 bilhões para R$ 6 bilhões, menos do que seu programa de investimentos para 2009, quando estão previstos R$ 8,6 bilhões entre recursos próprios e captações. Até o momento, apenas o BNDES aceitou trocar os US$ 1,5 bilhão que tem a receber para dividendos.

Mas os problemas vão além. Para capitalizar a Eletrobrás com esses R$ 4,5 bilhões é preciso que haja uma previsão no orçamento de investimentos do Ministério da Fazenda para a Secretaria do Tesouro. "Esse foi o ponto que pegou no ano passado. Para aportar esse dinheiro o Tesouro precisa ter previsão no orçamento de investimentos dele. E no ano passado perdemos para a área de saúde e educação. O problema é ter orçamento. Tanto o colegiado quanto o conselho de administração querem pagar. Todo mundo sabe que isso está prejudicando a Eletrobrás", afirma.

Um efeito colateral do modelo desenhado é que os minoritários que não acompanharem o aumento de capital serão diluídos. "Mas não tem como fazer omelete sem quebrar os ovos. Os preferencialistas são os que reclamam mais porque não recebem dividendos e vão ter que entrar com o dinheiro para subscrever. Em qualquer aumento de capital tem diluição. Isso faz parte do jogo. Aí é a regra do mercado", complementa.

Outra alternativa seria o parcelamento do pagamento dos dividendos retidos em parcelas anuais, mas o próprio diretor da Eletrobrás admite que encontra resistência dos minoritário devido à pouca confiança que se tem na empresa. "Alguns analistas acham que vamos pagar só a primeira parcela. Desde 2003 eu acompanho esse assunto. Tecnicamente o parcelamento é possível e tem ainda um ponto positivo que é pagar só o que não comprometer a meta do superávit", explica Quental.

Ele se refere a outra discussão envolvendo a empresa no governo, que é sua permanência ou retirada do cálculo de superávit primário, ainda dentro da meta de se tornar um "espelho" da prima rica, a Petrobras. Em 2008 a meta da Eletrobrás era de R$ 1,4 bilhão (com Itaipu), mas ela realizou R$ 2,5 bilhões. Ao longo do ano passado houve uma mudança na metodologia de cálculo das contas de Itaipu na meta de superavit da Eletrobrás. "Mudou a metodologia de contabilização mas a nossa meta ficou a mesma. Achamos que fizemos R$ 2,5 bilhões, o que dá R$ 1,1 bilhão acima da meta inicial. Essa discussão continua presente hoje. A meta [de superávit] deste ano [2009] é de R$ 1,6 bilhão e se tenho aproximadamente R$ 1,5 bilhão de Itaipu por essa metodologia o sistema Eletrobrás teria que fazer só R$ 100 milhões. Mas eles dizem que minha meta é R$ 1,6 bilhão sem Itaipu", explica.

Outro problema é a forma como os fundos setoriais administrados pela companhia - entre eles a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e a Reserva Global de Reversão (RGR) - entram no cálculo da meta. "A CDE vai embora e da RGR tem que sobrar R$ 600 milhões. Com isso estou aumentando a RGR a cada ano sem poder gastar. Esse dinheiro eu aplico no Banco do Brasil. Temos hoje R$ 6 bilhões que não podemos gastar porque esse dinheiro não é nosso, só administramos. Ele é do Tesouro, tanto que não o considero no meu caixa. Mas ele entra na minha meta de superávit", explica.

O tema opõe os ministros Paulo Bernardo (Planejamento), Dilma Rousseff (Casa Civil) e Edison Lobão (Ministério de Minas e Energia), todos a favor em diferentes graus, e o ministro Guido Mantega, da Fazenda. Este último avalia que, para ter tratamento igual ao da Petrobras no cálculo do superávit, a Eletrobrás precisa aumentar sua eficiência, lucratividade e foco.

O discurso contraditório do governo sobre o tema não melhora a percepção do mercado sobre a empresa. Em relatório divulgado no mês passado para clientes, o analista da corretora Ativa avaliava que a principal razão por trás do presente esforço da Eletrobrás para sair das contas do superávit primário se devia à concentração de leilões de usinas neste ano. "Lembramos, no entanto, que uma liberdade ampliada para investimentos, poderia significar a participação em projetos ainda menos lucrativos do que os já observados nos últimos anos", afirma o relatório, destacando que a participação da estatal no leilão para construção da hidrelétrica Belo Monte, com mais de 9 mil megawatts (MW) de potência instalada e marcado para o segundo semestre, "poderia implicar em riscos ainda maiores para a Eletrobrás que é a maior candidata a vencer".

Ao comentar o plano de investimentos da estatal de R$ 30,2 bilhões em um relatório, o banco de investimentos Goldman Sachs afirma que a Eletrobrás precisa aumentar o retorno dos investidores para elevar a atratividade dos negócios. Entre os pontos sugeridos está um aumento do retorno sobre os investimentos e acabar com a "dragagem" de recursos por parte das distribuidoras do sistema Norte que são controladas pela Eletrobrás (Eletroacre, Ceron, Boavista Energia e Manaus Energia). Sobre essas, o diretor da Eletrobrás diz que o foco será negociar com a Aneel "uma base regulatória adequada já que por lei, a distribuição tem que dar retorno". O problema ali, segundo Quental, é que elas não têm uma empresa de referência adequada para cálculo da tarifa. "O grande trabalho da distribuição neste ano vai ser regulatório. No ano passado se reverteu o resultado das distribuidoras do sistema muito em cima da reversão de créditos tributários e da diminuição de perdas. A gestão deve vir este ano. Precisamos demonstrar para a Aneel que essas concessões precisam ter equilíbrio."

Para Quental, a oposição entre os ministérios de Minas e Energia, Planejamento e Fazenda mostram que a decisão tem que ser tomada em uma esfera mais alta de governo. "É lógico que um dos sucessos do governo Lula é o equilíbrio fiscal. Mas a empresa não pode ficar amarrada por isso se quisermos ter uma Petrobras do setor elétrico."