Título: Lei aposta na asfixia financeira do crime
Autor: Cristine Prestes e Thiago Vitale Jayme
Fonte: Valor Econômico, 09/03/2005, Especial, p. A12
Nem aumento, nem agravamento de penas. O principal foco da proposta de alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro em estudo no país é justamente o que dói mais em quem comete crimes dessa natureza: o bolso. O primeiro esboço do anteprojeto que pretende alterar a Lei nº 9.613, de 1998, tem como escopo a idéia de combater a criminalidade mediante um bloqueio eficiente da circulação e da aquisição dos valores provenientes de atividades criminosas, independentemente de quais sejam elas. O anteprojeto da nova Lei de Lavagem de Dinheiro ainda está em estudo pelos órgãos que compõem o Gabinete de Gestão Integrada de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro - que inclui representantes do governo federal, do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, entre outros. Até o dia 20 de março eles enviarão sugestões de alterações na minuta do anteprojeto. A previsão é de que, após consolidado e submetido à apreciação da Casa Civil da Presidência da República e à Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, ele seja enviado ao Congresso Nacional, o que deve ocorrer no fim do mês de abril. Apesar de ainda não concluído, em linhas gerais já é possível perceber que, ao invés de imputar à lavagem de dinheiro penas mais duras de reclusão, a futura nova legislação prioriza o combate ao crime por meio da "asfixia financeira" das organizações criminosas. "Trata-se de uma mudança de cultura no combate ao crime organizado no país", afirma Antenor Madruga, diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça. "Historicamente as pessoas foram treinadas para prender pessoas, mas o objetivo também é o de recuperar os bens desviados", diz. "A questão do bolso é um ponto fundamental, porque a idéia do combate à lavagem de dinheiro é descapitalizar o criminoso", diz Sérgio Moro, juiz da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba. "Talvez isso seja até mais eficiente do que a própria prisão, embora uma coisa não exclua a outra." Especialista no combate à lavagem de dinheiro, Moro é o condutor das investigações que apuram a emissão ilegal de dinheiro ao exterior por meio das contas CC-5 do Banestado. Em 2004, o magistrado determinou o cumprimento de 123 mandados de prisão e 215 de busca e apreensão na operação batizada pela Polícia Federal como Farol da Colina, colocada em prática em oito Estados do país simultaneamente para prender doleiros. Da forma como está, o anteprojeto da nova lei dedica boa parte de seu texto às restrições econômicas impostas aos réus que respondem por crime de lavagem de dinheiro. Uma das medidas de maior impacto, segundo advogados criminalistas, seria a permissão de alienação antecipada dos bens apreendidos ou indisponibilizados. O objetivo da medida, segundo Antenor Madruga, é o de preservar o valor do bem apreendido. Embora a legislação brasileira já determine a preservação do valor do bem, esta será a primeira vez que a medida estará explícita, caso o anteprojeto se torne lei. Ele dedica nada menos do que treze parágrafos de seu artigo 4º para definir de que forma ocorrerá a alienação. Assim, o Ministério Público poderia pedir ao juiz a alienação antecipada dos bens apreendidos que, caso aceite o pedido, determinaria a avaliação dos bens e sua venda por meio de um leilão ou pregão eletrônico. A quantia, ainda segundo o anteprojeto de lei, seria depositada em uma conta judicial remunerada, deduzidos os tributos e multas. No caso de bens cuja venda seja desaconselhada, o juiz nomearia um administrador. Além de estabelecer as regras para a alienação de bens, o anteprojeto ainda estabelece que, antes mesmo de iniciada a ação penal, ainda durante a investigação criminal, o juiz pode determinar a alienação. Hoje a Lei nº 9.613/98 já prevê essa alienação, mas estabelece que a medida deverá ser suspensa caso a ação penal não tenha início num prazo de 120 dias. De acordo com o advogado criminalista Luiz Guilherme Moreira Porto, sócio do escritório Reale Advogados, a medida seria extremamente válida para o processo de recuperação dos valores obtidos de forma ilícita. No entanto, ele aponta riscos. "A alienação de bens antes do trânsito em julgado da ação não pode ser feita a qualquer custo", afirma. Ele conta o caso do proprietário de uma distribuidora de títulos e valores que, durante uma operação da Polícia Federal, teve um total de R$ 1 milhão em bens apreendidos sob acusação de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro. Hoje, dois anos após a apreensão e sem que se tenha iniciado a ação penal por falta de provas, os valores ainda não foram devolvidos, mesmo com o prazo legal de 120 dias. A empresa, por falta de recursos, acabou fechando as portas. "As apreensões e bloqueios de bens hoje são muito rápidas, mas a liberação dos bens demora meses", afirma. Domingos Fernando Refinetti, no entanto, defende regras mais rígidas para tornar bens supostamente ilícitos indisponíveis. Advogado do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados e coordenador de uma operação internacional de recuperação de US$ 190 milhões desviados do banco Noroeste, ele diz esperar no Brasil regras mais ágeis e autonomia do Judiciário como as encontradas em países como a Inglaterra, Estados Unidos, Suíça e até mesmo Nigéria. Neste último país, o advogado conta que há cerca de US$ 80 milhões provenientes da fraude - considerada a maior já encontrada no setor bancário do país e um dos mais famosos casos de lavagem de dinheiro no mundo - indisponíveis e com valores preservados. "O mundo inteiro tem adotado este tipo de medida, e já está mais do que na hora de tê-las no Brasil", afirma. "É fundamental que a punição seja feita no bolso do lavador de dinheiro, pois é com esses mesmos recursos que ele, inclusive, se defende." Ainda é difícil para os especialistas estimar o impacto das medidas propostas pelo anteprojeto de lei, pois elas dependerão muito da estrutura dos órgãos de combate para colocá-las em prática. O juiz Sérgio Moro acredita que, no caso do Banestado, alguns pontos previstos na proposta em estudo facilitariam o trabalho, embora não fossem determinantes. Mas destaca questões objetivas. "Hoje, a alienação antecipada só é possível com exercício de interpretação da legislação atual, mas com uma legislação específica, isso fica muito mais fácil e não será sujeito a questionamentos por parte do acusado", diz. Na mesma linha de apostar no bolso como o foco principal de combate à lavagem de dinheiro, o anteprojeto de lei prevê ainda a liberdade provisória mediante pagamento de fiança - situação vetada na lei atual e que encontra resistências no Judiciário. Mas, ao contrário de representar um mecanismo de abrandamento da legislação, como aparenta, a previsão de fiança também segue o viés econômico: ela seria proporcional ao valor envolvido na operação de lavagem de dinheiro investigada, o que em muitos casos pode representar milhões. "Hoje, o que se tem de fiança na legislação brasileira é o que está no Código de Processo Penal e os valores têm o salário-mínimo como referência", diz Moro. A medida, no entanto, pode encontrar resistência no Judiciário. Segundo o criminalista Diogo Malan, do escritório Siqueira Castro Advogados, o Supremo Tribunal Federal já declarou inconstitucional a não-previsão de liberdade provisória na análise da Lei dos Crimes Hediondos. A liberdade provisória apenas mediante fiança poderia, portanto, seguir o mesmo caminho.