Título: Derivativos, valorização do real e juros
Autor: Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2005, Opinião, p. A10

Há muitos argumentos contrários à cobrança do IOF nos ingressos de capitais de curto prazo, mas quem desejar assumir uma posição contrária a essa cobrança é bom que o faça pelas razões corretas. Essa posição contrária à sua adoção jamais poderia ser justificada pelo fato de que "é grande o volume de derivativos em reais negociados no exterior, fora do controle das autoridades brasileiras, o que mitigaria os efeitos de eventuais restrições domésticas à entrada de capitais", porque este é simplesmente um argumento errado. O fato é que, com a taxa doméstica de juros em 18,75% ao ano (ou mesmo menor), e com a extrema liquidez da economia internacional, produzindo taxas de juros em aplicações de um ano em torno de 3% ao ano, é enorme o incentivo para se aplicar em reais. Com isso, produz-se um fluxo de capitais que gera forças que conduzem à valorização do real, até aqui minimizada através da acumulação de reservas pelo Banco Central e do achatamento da curva de estrutura a termo de taxa de juros. A força desse movimento é atestada pelas maciças compras de reservas pelo Banco Central no mercado à vista (US$ 10 bilhões), desde que iniciaram as intervenções no mercado cambial, em dezembro passado. E a existência de derivativos em reais negociados no exterior certamente não inibe esse processo. Pelo contrário, ela a facilita e estimula. Vejamos como isso ocorre. Um investidor estrangeiro procura um banco nos Estados Unidos ou na Europa para investir seus dólares. O banco oferece uma aplicação em reais, por um ano, rendendo 18% ao ano, e com isso o banco fica com os dólares do investidor e com um passivo em reais, assumindo uma posição vendida em dólares. A operação não pode parar neste ponto porque o banco está descasado em moedas, o que o conduz a comprar um contrato de reais futuros (NDF - BRL) também no exterior. Isso casa o banco e deixa o arbitrador descasado por ter vendido reais futuros no exterior. Para cobrir-se do risco, o arbitrador vem à BM&F e vende dólar futuro, o que cobre o seu risco de câmbio, mas deprime o preço do dólar futuro. Isso produz a queda do dólar futuro relativamente à taxa cambial no mercado à vista, o que induz um outro arbitrador a vender dólares no mercado à vista, ingressando dólares no país, comprando dólares (mais baratos) no mercado futuro e investindo os reais obtidos na compra de juros futuros na BM&F, com a mesma data de vencimento de seu contrato de câmbio futuro. O resultado é simultaneamente a valorização do real e o achatamento da curva de estrutura a termo de taxa de juros. Somente a visão estreita de que tudo se passa apenas no exterior poderia ignorar o fato de que se gerou um ingresso de dólares. Quando o volume dessas operações cresce, o mercado de balcão no exterior aparelha-se para enfrentar essa situação, e abre "livros off-shore" em reais, nos quais são registrados depósitos em dólares a serem devolvidos em dólares com a remuneração do real, como se fosse uma NTN-D ao contrário. Estes "livros" são formados por todos os tipos de operações ativas e passivas que envolvem reais, como as de importadores, exportadores, empresas em busca de hedge, investidores, etc. As operações são referenciadas às cotações da BM&F, mas ocorrem no exterior. Todo o dia é feito o clearing, e se houver discrepância entre oferta e demanda a instituição detentora do "livro" vem à BM&F para cobrir sua posição líquida. O volume destas operações é grande, dando a falsa impressão de que todo o movimento ocorre apenas no exterior. Seria assim se existisse no exterior um volume igual de tomadores e doadores de taxas de juros em reais, mas isso é impossível porque o diferencial entre a taxa de juros no Brasil e no exterior desempata esse jogo, em favor do maior número de compradores de ativos em dólares rendendo juros em reais, que foi descrito no parágrafo anterior e que produz a valorização do real e o achatamento da curva de estrutura a termo de taxa de juros. O mecanismo econômico deste processo é mais complexo do que sua simples visão contábil, gerando interpretações erradas. É claro que quanto mais elevada for a taxa SELIC, maior será a indução ao ingresso de capitais, e maiores serão as pressões para valorizar o real e para achatar a inclinação da curva de estrutura a termo de taxa de juros. O Banco Central pode reagir deixando o real valorizar-se, ou alternativamente, intervindo no mercado cambial e acumulando reservas. A sua opção depende do balanço entre o custo marginal e o benefício marginal daquela acumulação. O custo marginal da acumulação de US$ 10 bilhões adicionais de reservas é o da sua esterilização, equivalente à taxa de juros atual a 18,75% ao ano sobre esses US$ 10 bilhões convertidos em reais à taxa cambial à qual o Banco Central realizou a compra, menos a taxa de juros à qual aplica estas reservas no exterior. O benefício marginal, por outro lado, depende de várias circunstâncias, dentre as quais três são claras. A primeira é a probabilidade de uma alteração na situação internacional de liquidez. É claro que, se ocorrer uma reversão da liquidez internacional, é melhor que o país enfrente essa alteração com um nível mais elevado de reservas. A segunda é o próprio estoque de reservas. O benefício de mais US$ 10 bilhões de reservas é menor quando o estoque de reservas é de US$ 35 bilhões do que quando ele é de US$ 25 bilhões, ou seja, declina com o tamanho das reservas. Finalmente, o benefício marginal quando o país tem um superávit nas contas correntes é menor do que quando o país tem um déficit nas contas correntes, o que, no evento de uma redução da liquidez internacional, requer um ajuste menor do câmbio real. Qualquer recomendação sobre o nível ótimo de reservas depende da interação entre estas três causas, o que está longe de conduzir a uma resposta de consenso. Porém, o fato de que o custo marginal é dado pelo diferencial entre a taxa de juros no Brasil e no exterior, que é alto, mostra que a acumulação de reservas nem sempre é bem vinda, e ainda que o seja, deve ser finita. A alternativa para evitar o custo da acumulação de reservas é deixar o câmbio valorizar-se, permitindo uma queda mais rápida da inflação. No entanto, quem observa a atual liquidez internacional e busca inutilmente descobrir uma situação semelhante a esta nos últimos 30 anos, não pode deixar de perceber que há uma elevada probabilidade de terminar, e que este final pode ser bastante desagradável. Isso justifica a prudência do Banco Central em tomar o caminho da acumulação de reservas. Embora tenhamos que aplaudir a sua prudência, é preciso reconhecer que existe um custo marginal elevado naquela acumulação e que, na velocidade na qual ela vem ocorrendo, o BC se defrontará, um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, com o cruzamento entre as curvas de custo marginal e de benefício marginal, tendo que fazer escolhas menos óbvias. O achatamento da inclinação da curva de estrutura a termo de taxa de juros é, nas presentes circunstâncias do combate à inflação, no Brasil, uma preocupação, porque reduz a eficácia da política monetária. A acumulação de reservas pode evitar a apreciação do real, mas não evita a depressão das taxas de juros futuras, o que tem conduzido não somente a um achatamento, mas também a uma inclinação negativa da curva a partir de 180 dias, levando a taxas de juros em operações de dois anos significativamente abaixo da taxa SELIC. Quando isso ocorre, o Banco Central tem que trabalhar com uma taxa SELIC mais elevada, o que é um custo, e infelizmente tem que reconhecer que quanto mais elevar a SELIC, mais atrairá o fluxo de capitais e mais afetará os juros futuros na direção contrária à desejada pelo aumento da SELIC. Quando o mundo inteiro quer ficar vendido em câmbio, e o Banco Central se dispõe a comprar, o ingresso de capitais não cessa. Reconhecemos que uma contribuição importante para minorar este efeito sobre a inclinação da curva de juros poderia ser dada pelo Tesouro Nacional, colocando títulos da dívida pública com taxas pré-fixadas em prazos mais longos. Não se trata de empurrar o Tesouro Nacional para a realização de operações típicas de política monetária, mas de induzi-lo a pensar um pouco mais ambiciosamente em ações que melhorem o perfil de vencimentos da dívida pública, com uma externalidade positiva para a eficácia da política monetária. É sabido, há tempos, que as evidências empíricas geradas por vários estudos mostram que a imposição de IOF sobre o ingresso de capitais de curto prazo tem eficácia apenas temporária: com o passar do tempo, o mercado encontra formas de contornar seus efeitos. Este fato, aliado à circunstância de que o Banco Central vem dando passos importantes na simplificação das transações na conta de capitais, e de que ainda vê na acumulação de reservas um benefício marginal importante, é razão para que não se pense na colocação do IOF, e se opte por outros caminhos para atuar sobre a inclinação da curva de estrutura a termo de taxa de juros. Esta é uma opção que pode fazer sentido, e se este for o caso, ela conduz pelo menos temporariamente à rejeição da proposição de taxar os ingressos de capitais. Que esta opção seja então feita, mas pelas razões que são defensáveis, e não pelas razões erradas.