Título: Medidas populares desagradam empresários
Autor: Boechat , Yan
Fonte: Valor Econômico, 05/06/2009, Especial, p. A16

Nas últimas duas décadas, nenhum partido no país conseguiu criar uma identificação tão grande com o setor empresarial brasileiro quanto o PSDB. Foi no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que demandas históricas do PIB nacional, como a liberalização da economia, a modernização do Estado e a transferência de setores estratégicos, estatais e monopolistas, para a iniciativa privada foram concretizadas.

É este paradoxo que preside a relação do empresariado com o principal pré-candidato do partido, a maior figura nacional do PSDB nesta primeira década do século 21, o governador de São Paulo, José Serra. Herdeiro natural de Fernando Henrique no cenário nacional, Serra acumula muitos dos predicados que agradam o empresariado brasileiro, tanto na esfera econômica quanto na gestão pública. Mesmo assim, o governador paulista está longe de conquistar os corações e as mentes do setor produtivo. Em sua vasta maioria, os empresários o veem como um administrador autoritário, inflexível e com atitudes quase ditatoriais.

As críticas se repetem desde que Serra assumiu o Ministério da Saúde, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, onde começou a ser preparado, de fato, para sucedê-lo na Presidência. Seu projeto de implantação dos remédios genéricos no país e a quebra de patentes de anti-virais no combate à Aids foi extremamente bem recebido pela população, mas acendeu uma luz de alerta no setor empresarial. Os casos de decisões unilaterais se sucederam ao longo dos anos e culminaram na última batalha em campo aberto entre o governador paulista e empresários, ainda em curso. Dessa vez, a briga é por conta de um novo sistema de cobrança do ICMS, conhecido como substituição tributária. "Ele não negocia, não ouve ninguém, age como se fosse o senhor absoluto, está fazendo tudo errado", diz um empresário de ligação histórica com o PSDB.

José Serra conhece sua fama de autoritário. Sabe que na maior parte das vezes ela lhe trouxe ativos políticos importantes, como na questão dos genéricos, e sempre a considerou uma espécie de efeito colateral inevitável. Mas agora, às vésperas de uma nova e difícil eleição presidencial na qual provavelmente será o candidato pela última vez ao cargo máximo do país, começa a se preocupar com a pecha de inflexível que lhe foi concedida pelo setor empresarial. "O Serra mudou, em todas as decisões que toma consulta os setores envolvidos", diz o diretor de Comércio Exterior da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Roberto Gianetti da Fonseca, que vem prestando uma espécie de consultoria informal ao governador. "O que falta é ele mostrar isso", diz Gianetti da Fonseca.

Para a mais de uma dezena de empresários, executivos de grandes empresas e associações de classe ouvidos pelo Valor falta bem mais do que isso. A visão dominante sobre o governador de São Paulo ainda não registra este José Serra mais aberto ao diálogo democrático ao qual Gianetti se refere. As últimas medidas polêmicas adotadas pelo governador, como a criticada substituição tributária e a restritiva lei de combate ao fumo, talvez estejam amplificando as críticas. Mesmo setores que não foram atingidos por essas decisões continuam vendo Serra como um político que tem o autoritarismo em seu DNA.

"Serra é brilhante intelectualmente, provavelmente um dos políticos mais bem preparados do país, mas ele não sabe compor, não consegue agregar e é extremamente intervencionista", diz o presidente de uma multinacional com operações em todo o país e com faturamento contado aos bilhões. "Ele é o menos indicado para dar sequência à prática política positiva de [Luiz Inácio] Lula [da Silva] de fazer com que os diversos setores da sociedade participem da formulação de programas", diz o executivo, que não teve suas operações impactadas pelas últimas medidas do governador paulista. A opinião é comungada por um outro executivo, este do setor de infraestrutura. "É raro encontrar alguém como o Serra, com o preparo dele, mas ele não ouve ninguém, parece ficar cego com suas idiossincrasias", diz o executivo, relatando uma conversa ríspida que teve com o governador a respeito de problemas enfrentados por sua empresa com uma grande estatal paulista. "Ele simplesmente disse que se levantaria da mesa se o assunto não fosse encerrado imediatamente", relembra o executivo.

As críticas se acentuam à medida que os empresários são impactados pelas decisões tomadas pelo governador paulista. "Esse governo é ímpar em não ter diálogo", afirma o presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Luiz Carlos Guimarães, ao criticar o sistema de substituição tributária para a energia vendida no mercado livre. De acordo com ele, o único caminho para resolver o impasse será a Justiça. "O governo conseguiu a proeza de colocar todo o setor contra ele".

A substituição tributária é a batalha da vez entre José Serra e o setor empresarial. Por esse sistema, o ICMS é cobrado na fonte da cadeia produtiva industrial. Isso significa que o recolhimento do tributo cabe à indústria, que o fará de acordo com um preço ao consumidor final estimado pela Secretaria da Fazenda de São Paulo. Com isso, tanto o distribuidor quanto o varejista que venderá o produto, seja este energia elétrica ou um colchão de molas, paga à indústria um valor onde já estão agregados os impostos. "Essa prática é no mínimo burra, porque ela não leva em conta o livre mercado", diz um empresário do setor. "O varejista não pode mais fazer promoção, não pode mais negociar preço com a indústria, porque o Estado já tabelou o valor final", diz. "Se ele vender abaixo desse preço, vai pagar imposto sobre aquele valor definido pelo Estado de qualquer maneira".

A medida, adotada em total desacordo com o setor empresarial paulista, tem criado uma série de feitos colaterais. Por conta do que os varejistas consideram como sobre-tributação, muitos desistiram de comprar produtos dos distribuidores paulistas. Esses, por sua vez, estão transferindo as operações para Estados vizinhos, como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e mesmo Goiás.

Como o governo paulista não pode exigir o mesmo sistema de tributação a empresas de outros Estados, os produtos produzidos em São Paulo viajam para Estados vizinhos e retornam a São Paulo. E como não há postos fiscais nas rodovias paulistas, a chance de que a sonegação aumente cresce ainda mais. "O Serra está mal assessorado, não é possível", diz um executivo que afirma ser eleitor de longa data do governador paulista. "Está todo mundo apavorado, ele está fazendo isso em ano pré-eleitoral, o que poderá fazer se for presidente?"

A Secretaria de Fazenda de São Paulo afirma que adotou a medida para coibir a sonegação e que aqueles que criticam a medida estão, na verdade, se opondo a um controle mais efetivo contra as irregularidades. Com essa e outras medidas o governo paulista espera ampliar sua arrecadação do ICMS em R$ 5 bilhões no acumulado de 12 meses. Para muitos empresários, Serra está, na verdade, acumulando capital político ao ampliar a arrecadação às custas do setor. "Com o nosso sacrifício ele vai poder chegar nas eleições dizendo que ampliou a arrecadação, que tem superávit, que é um ótimo administrador", diz um executivo.

Independente de como vai obter esses resultados, a austeridade fiscal, o controle dos gastos públicos e a modernização da máquina serão bandeiras que José Serra levará para o embate eleitoral. Mesmo sem admitir que pretende ser candidato à Presidência, o governador paulista já vem fazendo comparações nesse sentido com o governo federal. Por mais de uma vez Serra afirmou publicamente que o superávit fiscal do Estado de São Paulo foi maior em números absolutos do que o da União no primeiro trimestre deste ano. E que enquanto a arrecadação federal cai, a estadual sobe.

Serra tem uma visão do Estado que agrada o setor empresarial. Como vem mostrando em sua gestão, o governador de São Paulo aposta em parcerias com a iniciativa privada para enxugar a máquina pública e levantar recursos para fazer novos investimentos. O processo de concessão das rodovias estaduais para empresas privadas é um exemplo. Em meio à maior crise financeira mundial das últimas décadas, o governo paulista conseguiu arrecadar R$ 3,4 bilhões com a concessão de cinco rodovias do Estado. Além disso, transferiu para a iniciativa privada a responsabilidade de investir outros R$ 8 bilhões ao longo dos próximos 30 anos nessas estradas.

Medidas como essa, a preocupações com as contas públicas, o enxugamento da máquina e uma visão econômica tida como arrojada são os pontos que aproximam, e muito, o governador e o setor empresarial. Quando analisam Serra sob esses aspectos, poucos são os executivos que lhe criticam. Em geral, não poupam elogios à capacidade de José Serra como gestor.

"Ele é um político com visão nacional de Estado e projeto claro de desenvolvimento. Comporta-se como alguém que não é marionete e que não oscila de acordo com as circunstâncias", diz um empresário do setor têxtil de Minas Gerais, Estado do opositor partidário de Serra na disputa pela candidatura a presidente, o governador Aécio Neves. "Serra é sem dúvida o candidato com mais capacidade e vontade política para fazer as reformas que são importantes para o país, não tem os comprometimentos que a Dilma [Rousseff, ministra da Casa Civil e candidata do presidente Lula à sua sucessão] tem com sua base e dispõe de uma força política que falta ao Aécio", afirma o presidente de uma empresa de telecomunicações com atuação nacional.

As críticas à política monetária adotada pelo Banco Central, que vêm desde sua época de ministro do Planejamento, no primeiro mandato de Fernando Henrique, também ecoam de forma positiva no setor produtivo. Serra é o crítico mais ácido e contumaz da estratégia de juros altos adotada pelo BC nos últimos 15 anos. Desde o início deste ano o governador ampliou os ataques à entidade comandada por Henrique Meireles, afirmando que falta aos membros do Copom conhecimento econômico suficiente para conduzir a política monetária. Por mais de uma vez comparou publicamente a estratégia do Banco Central ao esquema fraudulento criado pelo imigrante italiano Carlo Ponzi na Nova York dos anos 20. Todas as vezes foi aplaudido de maneira efusiva por empresários e economistas que formavam a plateia para seus discursos.

"O Serra é um governante com excepcional visão econômica", afirma o presidente de uma das maiores empresas de agronegócio do país. Mesmo sem ter uma relação mais íntima junto aos empresários do campo, suas ações no governo e seu discursos econômicos são extremamente atrativos para o setor. "Essa visão pode desembocar em ações de apoio à eficiência empresarial e à iniciativa privada de uma maneira geral", diz esse empresário. Visão semelhante tem o dono de uma grande empresa sucroalcooleira de São Paulo, setor que vive em lua de mel com o governador desde que a alíquota do ICMS foi reduzida. "Conta muito a favor do governador a redução do ICMS para o álcool no Estado de São Paulo de 25% para 12%, isso incentivou outras unidades da federação a fazer o mesmo", diz.

Serra corre agora contra o tempo para conseguir desfazer essa imagem de político autoritário tão difundida no setor empresarial. Já a partir do próximo semestre o governador paulista vai procurar uma aproximação cada vez maior com grupos empresariais, executivos de grandes empresas e associações de classe. "Esta aproximação já está ocorrendo e só vai se intensificar", diz Roberto Gianetti da Fonseca, que tem buscado fazer a interlocução entre o governador paulista e o setor produtivo.

Ao longo de sua carreira no executivo, que teve início em 2006 na Prefeitura de São Paulo, os contatos pessoais de Serra com empresários e executivos nunca foram uma constante. Muitos deles reclamam que é quase impossível chegar ao governador. "Serra é um governante muito distante do empresariado, que sempre destaca auxiliares para fazer a interlocução", diz o presidente de uma empresa de telecomunicações. "É muito raro ele receber a alguém, isso atrapalha a comunicação e o faz ter uma imagem de arrogante junto ao setor", afirma um outro executivo.

A estratégia de Serra de se mostrar um governante mais democrático, mais aberto ao diálogo será novamente bombardeada nos próximos meses. A partir de agosto começa a vigorar em São Paulo uma lei extremamente restritiva no combate ao fumo. Além de outras medidas, bares, restaurantes, boates e outros estabelecimentos semelhantes não poderão permitir que seus clientes fumem em lugar algum de seus estabelecimentos. Associação de Bares e Restaurantes promete brigar na Justiça para que a lei não entre em vigor, acusando-a de inconstitucional.

Como resultado, ganhou mais um setor em seu rol de inimigos. "Serra seria um presidente ditatorial, que só teria comparação com dois dos presidentes que já foram eleitos: Jânio e Collor", diz um irritado empresário do setor. "Não há hoje no Brasil nenhum político tão truculento", afirma.

A medida, por sua vez, deve trazer ganhos políticos importantes para José Serra, que mais uma vez vai se mostrar como um político que não teme o poder de grandes grupos econômicos quando pretende tomar atitudes pelo bem da população. A estratégia parece dar bons resultados. Até hoje, quase dez anos depois, Serra ainda é lembrado por uma vasta maioria da população como o pai dos genéricos. (Colaboram Fernando Lopes e Mônica Scaramuzzo, de São Paulo)