Título: Déficit público pode frustrar recuperação pós-crise, alerta OCDE
Autor: Romero , Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 08/06/2009, Especial, p. A

As principais economias do mundo continuam em processo de retração, mas a taxa de contração está diminuindo. É possível que comecem a se recuperar lentamente em 2010. Há, no entanto, um grande risco adiante que pode abortar a recuperação: o crescimento das dívidas e do déficit público em países como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. Nas últimas semanas, a rentabilidade dos títulos públicos emitidos por esses e outros países cresceu, indicando que os investidores podem estar exigindo dos governos prêmios mais elevados para financiá-los.

"Se essa é a principal razão para a alta na rentabilidade desses títulos, isso vai ter um impacto negativo na atividade econômica daqui em diante. Além disso, terá um impacto retro-alimentador nos déficits governamentais via pagamentos do serviço da dívida", adverte Jorgen Elmeskov, economista dinamarquês que chefia o Departamento Econômico da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). A dívida pública líquida dos Estados Unidos, por exemplo, chegou a quase 70% do PIB - no Brasil, um país até pouco tempo atrás considerado altamente endividado, essa relação está abaixo de 40%.

Déficits públicos elevados aumentarão o custo de rolagem da dívida dos governos. Isso diminuirá o apetite dos investidores por papéis privados, o que dificultará o financiamento das empresas e, portanto, retardará a recuperação da economia. Nesta entrevista ao Valor, concedida na sede da OCDE, em Paris, Elmeskov diz que a situação fiscal dos países ricos antes da crise era menos cor-de-rosa do que se imaginava.

Os governos, explica o economista-chefe da OCDE, contavam com uma receita de impostos que acabou "para sempre". Trata-se dos recursos extraordinários arrecadados, segundo Elmeskov, a partir de distorções na economia provocadas pelo setor financeiro durante o período de otimismo. "Está claro que haverá mais deterioração fiscal ao longo do tempo, além do ativismo fiscal em vigor neste momento, do que podemos calcular. Nossa preocupação é que a crise tenha um impacto duradouro no crescimento potencial das economias da OCDE", diz o economista.

Elmeskov acha que ainda é cedo para falar em descolamento de países emergentes, como China e Brasil, da crise mundial, lembra que a queda dessas economias foi mais acentuada que a dos riscos, mas acredita que elas sairão mais cedo da turbulência. Quanto ao Brasil, ele diz que o país é uma "história bem-sucedida" de uma economia que adotou políticas equivocadas no passado, mas que, agora, está no caminho certo. Ele alerta apenas para a necessidade, dado o passado, de manter as contas públicas sob controle.

Valor: O pior da crise já passou?

Jorgen Elmeskov: Está claro que ainda estamos numa situação onde a atividade está se contraindo, nas economias da OCDE certamente, mas há sinais de vida. Basicamente, a taxa de retração está diminuindo. A esperança é que, com a redução da taxa de contração, vamos finalmente ter uma estabilização da atividade e uma recuperação. O que nós projetamos é que a contração vai continuar até o fim do ano e, depois disso, vamos ver uma recuperação lenta em 2010 nas economias da OCDE.

Valor: Surgiram indicadores positivos na economia chinesa, que levaram alguns analistas, entre eles, os da revista "The Economist", a acreditarem que haverá um descolamento da crise de países emergentes como Brasil e Índia. O sr. acredita nessa possibilidade?

Elmeskov: Temos que ser cautelosos em relação a isso porque todos falamos de descolamento quando a economia mundial estava caindo e, depois, vimos que não houve descolamento algum. O que aconteceu durante a queda é que os vínculos comerciais se mostraram muito fortes e, provavelmente, mais fortes do que muitas pessoas anteciparam ex-anti. Ao mesmo tempo, o aperto nas condições de crédito também afetou os mercados emergentes, portanto, se você olhar para os números da atividade econômica nos emergentes, em termos de desaceleração, ela foi mais rápida que a dos países da OCDE. É claro que a tendência de crescimento dos países emergentes é muito mais rápida que a das nações da OCDE.

Valor: O sr. acredita que a saída da crise será mais rápida nos emergentes?

Elmeskov: É ainda um pouco cedo para dizer, mas há alguns sinais apontando nessa direção. Você já aludiu ao fato de que, pelo menos com respeito à China, parece haver alguma indicação de que a economia pode ter saído do córner. Em outras economias também vemos alguns sinais encorajadores. A diferença entre os mercados emergentes e as economias da OCDE é que um bom número de países da OCDE, incluindo os maiores, está sofrendo uma ressaca séria em termos de necessidade de limpeza do balanço das empresas. Tome o caso dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Alemanha. Nesses países, há a necessidade firme de reequilíbrio dos balanços do setor financeiro. E isso também afeta outros países. Ao mesmo tempo há, num grande número de países da OCDE, proprietários de imóveis endividados. A queda dos preços dos imóveis significa que o problema está explodindo no orçamento das famílias, o que, presumivelmente, vai afetar a taxa de poupança. Novamente, há aqui a necessidade de limpeza e reparação dos balanços. Nos países emergentes, não há essa necessidade e isso pode causar algum otimismo. Eles podem emergir mais rapidamente do que as economias da OCDE.

Valor: Por causa da crise, o governo chinês está investindo em obras de infraestrutura para compensar o recuo dos investimentos privados. Estamos assistindo à mudança do modelo de desenvolvimento chinês, de exportador para um outro, amparado no mercado interno?

Elmeskov: Já está claro que podemos ver isso nos números de alguns setores econômicos que estão relacionados aos gastos públicos em infraestrutura. Os chineses estão acelerando os gastos rapidamente. Não há dúvida que o pacote de estímulo fiscal adotado pela China, que é bastante significativo, está tendo um efeito na economia. Na medida em que a incerteza na economia mundial pode ir adiante, o quanto essa expansão não-sustentada pelo setor privado pode funcionar é algo que ainda precisamos ver.

Valor: Quais seriam os riscos para a economia mundial daqui em diante?

Elmeskov: Um óbvio é o que ainda pode vir dos mercados financeiros. Parece que, agora, o cenário de desastre foi evitado. Mas acho que ainda não podemos nos declarar livres do perigo. As condições dos mercados financeiros têm melhorado nos últimos meses, mas ainda há problemas. Como mencionei antes, os balanços, especialmente dos bancos, necessitam ser reequilibrados.

Valor: Que outros riscos o sr. apontaria?

Elmeskov: Um dos temores diz respeito às políticas adotadas pelos países, o risco de se relaxar muito cedo. Alguém pode achar que "ok, we are out of the woods" (não estamos mais em perigo ou dificuldade), que não há mais necessidade para fazer mais, para limpar os balanços dos bancos, que não é mais necessário recapitalizar os bancos ou forçar os mercados a trabalharem de forma mais apropriada. Este é um risco. Por outro lado, acho que, neste momento, temos mais condições para medir os riscos dos mercados financeiros, ao contrário da situação onde estávamos alguns meses atrás. Eu diria que, agora, ninguém pode excluir a situação de ocorrer algum risco nessa melhora.

Valor: Em que sentido?

Elmeskov: Em março, quando divulgamos o último panorama econômico, previmos que as condições financeiras estariam basicamente muito pressionadas ao longo deste ano e melhorariam apenas, e de forma gradual, em 2010. Provavelmente, estamos agora um pouco à frente daquela previsão. Será necessário ocorrer uma contínua melhora das condições financeiras no restante do ano, o que poderá implicar algum risco, mas não muito. Em termos de outros riscos, uma das coisas para a qual estamos olhando agora, em vários países, é o que está acontecendo com a rentabilidade dos títulos públicos, que está aumentando virtualmente em todo o mundo. Nesse caso, eu diria que há uma questão de interpretação, que não é simples.

Valor: Qual é a interpretação?

Elmeskov: Uma delas é positiva. Ela diz que há agora muito menos fuga dos investidores para a segurança, portanto, as pessoas estariam se livrando de títulos públicos e, por isso, os retornos aumentaram (uma tentativa dos governos de torná-los mais atrativos). Este seria um bom sinal, indicando que a economia estaria voltando à normalidade. Esta é a história brilhante.

Valor: Qual é a outra interpretação?

Elmeskov: A interpretação negativa para o aumento do rendimento dos títulos dos governos é que os elevados déficits públicos e a perspectiva de que eles continuarão elevados por um bom tempo estão levando os investidores a exigirem um prêmio maior na compra de papéis dos governos. De fato, há vários estudos sugerindo que existe essa ligação entre os dois fatos. Se essa é a principal razão para a alta na rentabilidade desses títulos, isso vai ter um impacto negativo na atividade econômica daqui em diante. Além disso, terá um impacto retro-alimentador nos déficits governamentais via pagamentos do serviço da dívida. Não é simples dizer qual duas interpretações é a mais provável, mas está claro que há um enorme e sério risco vindo dos orçamentos dos governos.

Valor: O sr. teme que, dado o fato de que os governos estão abrindo o cofre para enfrentar a turbulência, possa haver uma crise fiscal após a superação da crise financeira?

Elmeskov: Eu diria que há uma grande limpeza a fazer nos orçamentos públicos. Mas, dado o fato de onde estávamos, não havia alternativa, a não ser usar dinheiro público para tentar estabilizar as economias. Aparentemente, essa estratégia tem sido bem-sucedida na medida em que o cenário de desastre tem sido evitado. Portanto, não havia alternativa, mas é óbvio que tem um custo. Vamos terminar essa fase com alguns desequilíbrios nos orçamentos públicos, que refletem não apenas a ação fiscal tomada.

Valor: Por quê?

Elmeskov: O endividamento é algo temporário, mas implica, no final, aumento da dívida dos governos. Há uma preocupação com o fato de que a situação fiscal antes da crise era muito menos cor-de-rosa do que parecia. Os títulos dos governos refletiam o que chamamos de "extraordinary revenue buoyancy" (receitas extraordinárias arrecadadas pelos governos durante o período de excesso de otimismo).

Valor: O sr. pode explicar melhor esse fenômeno?

Elmeskov: Eram receitas que vinham de um lado ou de outro de distorções nas economias relacionadas ao que estava acontecendo no setor financeiro. Foram receitas enormes arrecadadas a partir de ganhos de capital de investidores, além de muitas receitas vindas do setor financeiro, do setor de construção. Muito daquilo vai acabar para sempre. Então, está claro que haverá mais deterioração fiscal ao longo do tempo, além do ativismo fiscal em vigor neste momento, do que podemos calcular. Nossa preocupação é que a crise tenha um impacto duradouro no crescimento potencial das economias da OCDE. Vamos divulgar isso no próximo panorama econômico (ainda em junho).

Valor: O sr. pode antecipar alguns números?

Elmeskov: Infelizmente, não. Mas posso mencionar, por exemplo, que haverá um aumento nos níveis do desemprego estrutural, como efeito da elevação das taxas de desemprego. É provável que os prêmios de risco nos mercados financeiros sejam bem mais elevados do que aqueles aos quais estamos acostumados. Tudo isso deverá ter um impacto negativo nas contas dos governos. Há razões para estarmos preocupados com os orçamentos públicos. Há uma grande limpeza a ser feita após a crise.

Valor: Como as economias vão lidar com a liquidez que vem sendo criada nos mercados para enfrentar a crise?

Elmeskov: É difícil dizer. Uma coisa da qual estamos conscientes é que os bancos centrais criaram muitos instrumentos de empréstimo (para dar liquidez) e eles são de certa maneira mecanismos de autocorreção.

Valor: Por quê?

Elmeskov: Porque provisão de liquidez é algo que, naqueles instrumentos, tem uma penalidade. Então, quando as condições financeiras normalizarem, os participantes não vão querer continuar usando esses instrumentos. Trata-se portanto, de um recuo automático. Ao mesmo tempo, está também claro que, mesmo que os instrumentos de liquidez tenham a sua duração prolongada, não será por muito tempo assim. De fato, ainda há muito liquidez no mercado, e a dúvida é se a liquidez pode ser enxugada numa velocidade razoável.

Valor: Pode?

Elmeskov: Eu tendo a ser relativamente otimista quanto a isso. Uma preocupação óbvia é a inflação. Mas, lembre-se, nós vamos ter um grande hiato do produto (diferença entre o PIB efetivo e PIB potencial das economias). Isso vai colocar uma pressão menor sobre a inflação por um período de tempo razoável. Haverá, portanto, algum tempo adicional para enxugar a liquidez.

Valor: A crise começou na maior economia do mundo - a dos Estados Unidos. Como o sr. avalia a situação americana?

Elmeskov: Obviamente, há limites muito importantes. Acho que vai ficar claro que o tipo de recuperação dos Estados Unidos será o da correção, do reequilíbrio dos balanços das empresas e bancos. Isso significa que a ideia dos EUA como consumidores de última instância não vai funcionar. Portanto, outras partes do mundo terão que assumir parte daquela demanda. Em essência, você pode dizer que se trata de algo desejável, na medida em que também implica que os desequilíbrios internacionais, com os quais nós temos nos preocupado, podem ser reduzidos. Mas isso requer, das outras partes do mundo, a vontade de ocupar o espaço (deixado pelos EUA). Este é um grande "se".

Valor: O Brasil, depois de quase três décadas de baixo crescimento, estava se expandindo a quase 7% ao ano antes da crise. Com a reviravolta no mercado mundial, a economia entrou em recessão técnica e, agora, começa a dar sinais de crescimento. Quais são as perspectivas do país?

Elmeskov: A médio prazo, há certamente muito potencial para a economia brasileira. O Brasil é uma das histórias bem-sucedidas de um país que, no passado, perseguiu políticas muito perigosas, mas, depois, deu uma virada e basicamente focalizou numa linha correta e íntegra e tem se prendido a essa linha. Neste período de queda da economia, não tem havido tanto estímulo fiscal assim no Brasil, o que eu acho apropriado, dado o passado do país nessa área. Não é algo claro que os mercados de capitais tenham perdoado o grande déficit brasileiro. Assim, quanto mais tempo o país se mantiver comprometido com as políticas que adotou nos últimos anos, acho que as perspectivas tendem a ser boas. Há ainda, claro, muito trabalho a ser feito.

Valor: Em que áreas?

Elmeskov: Claramente, em termos de reformas domésticas. Por exemplo, a reforma das barreiras fiscais ao comércio interno.

O repórter viajou a convite da OCDE