Título: Quilombolas em guerra
Autor: Couto, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 24/01/2010, Brasil, p. 10

Descendentes de escravos brasileiros disputam posse de terra com fazendeiros em 14 estados do país

Antonio Pereira com integrantes da família na Cidade Ocidental (GO): ´´Espero que Lula cumpra a promessa e regularize as terras´´

Cidade Ocidental e Luziânia (GO) ¿ Cento e vinte e um anos depois da abolição da escravatura, oficializada em 13 de maio de 1888, descendentes de escravos brasileiros ainda enfrentam disputas com fazendeiros. Se antes a luta era pela liberdade, hoje os quilombolas reivindicam a posse de terras, conforme prevê o artigo 68 da Constituição Federal de 1988. Mesmo com esse dispositivo legal e com o Decreto Presidencial nº 4887/03 ¿ que sustenta toda a política federal de titulação de terras de quilombos ¿, pelo menos 45 comunidades negras comprovadamente ligadas às vítimas diretas do regime escravocrata estão em confronto com latifundiários em 14 estados do país (leia quadro). Dos 3.524 agrupamentos de quilombolas, 1.414 foram certificados pela Fundação Cultural Palmares (FCP). A certidão de autodefinição da área é o primeiro passo de um longo processo até a titulação. Na condição de posse definitiva da terra existem apenas 140 grupos reconhecidos pela União.

À exceção do Acre e de Roraima, todos os estados brasileiros têm comunidades quilombolas. ¿Apesar dessa forte presença no território nacional, das 1.414 áreas certificadas, 300 foram questionadas por fazendeiros¿, diz o presidente da FCP, Zulu Araújo. Para ele, o baixo orçamento da fundação, algo em torno de R$ 30 milhões por ano, não é o principal entrave à implementação das políticas. ¿A ordem orçamentária e um maior número de pessoal são importantes para dar velocidade ao processo, no entanto, nossa principal dificuldade é a resistência que uma parcela da elite brasileira possui a qualquer coisa que diga respeito à reparação e à política de ações afirmativas, tendo em vista os 400 anos de escravidão no Brasil¿, afirma Zulu. Para ele, um dos fatos que ratificam essa constatação é a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 3239/04, de autoria do partido DEM, ingressada no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o Decreto nº 4887.

Redução

Uma dessas comunidades quilombolas que enfrentam disputa com proprietários de terra é o povoado Mesquita, situado próximo à Cidade Ocidental (GO), a 60km de Brasília. Representadas pela Associação Renovadora dos Moradores e Amigos do Mesquita (Areme), 800 famílias descendentes de escravos aguardam que o Instituto Nacional de Colonização Agrária (Incra) desaproprie áreas de pelo menos 100 fazendeiros. ¿Hoje, vivemos dentro de 150 hectares, quando reivindicamos aproximadamente 3 mil hectares. Estamos cercados de latifundiários que desmatam, extraem areia, argila e cascalho. Se Lula não fizer nada, vão acabar com nossas terras¿, alerta João Antônio Pereira, presidente da Areme e integrante da quarta geração de quilombolas.

Reunidas na casa de um dos moradores mais antigos do Mesquita, Benedito Antônio, três gerações cobram do Incra a emissão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTD), documento que fornece elementos para a identificação do território ocupado pela comunidade. ¿Espero que ele (Lula) cumpra a promessa e regularize nossas terras¿, cobra João Antônio.