Título: Relações intrincadas e ignoradas
Autor: Afonso , José Roberto
Fonte: Valor Econômico, 12/06/2009, Opinião, p. A8

As relações entre Banco Central (BC) e Tesouro jogam papel-chave para o desempenho das finanças públicas e privadas. Essa importância cresce em tempos de crises sistêmicas. Mudanças na casa das centenas de bilhões de reais foram realizadas nos últimos meses no Brasil, mas informadas burocraticamente em relatos oficiais, passaram despercebidas. Destacamos alguns desses números para mostrar como são íntimas e intrincadas as relações entre política monetária e fiscal e que não devem ser ignoradas no debate público.

- R$ 185,3 bilhões foi quanto o BC transferiu ao Tesouro em março por conta de seu resultado positivo no segundo semestre de 2008. Refletiu o lucro com a desvalorização cambial - inclusive, R$ 10 bilhões que ganhou na ponta oposta dos derivativos cambiais que causaram graves danos a muitas companhias. A lei de responsabilidade fiscal determina que o resultado semestral do BC: se positivo, seja transferido para o Tesouro; se negativo, coberto por este. A lei 11.803/08 confirmou a vinculação desse lucro ao pagamento da dívida, "prioritariamente a existente junto ao BC".

- R$ 359,2 bilhões era quanto o Tesouro tinha na conta única depositada no BC (30/04/09). Os gestores da dívida advogam por um colchão de liquidez. Mas o exagero é evidente: esse de 12,3% do PIB, como o de 12,8% ao fim de março, é o maior dos últimos 100 meses (a média foi de 8% do PIB). Metade desse caixa está associado àquele resultado do Banco Central, ainda não reportado ao Orçamento Geral da União (2009). Se permanecer no caixa do Tesouro até o final do ano se transforma em superávit de fácil gasto. O real, no entanto, voltou a se valorizar e provocará prejuízo no BC neste semestre, logo, será difícil explicar como o Tesouro emitiria novos títulos de dívida para o BC sem ter dele resgatado papéis com o lucro anterior, como determina a legislação.

- R$ 474,2 bilhões era o tamanho da dívida mobiliária na carteira do BC (30/04). Por princípio, isso não afeta a dívida porque é governo devendo para governo. Tal carteira, porém, cresceu nos últimos tempos (equivale a 38% da dívida mobiliária do Tesouro, contra 27% dois anos atrás), ampliada pela cobertura dos antigos déficits com a valorização cambial. Uma hipótese para não se resgatar os títulos dessa carteira é que o BC precisa deles para contratar "operações compromissadas" com o mercado - nem toda carteira do BC, na prática, estaria com ele.

- R$ 396,2 bilhões foi o total das operações compromissadas do Banco Central (30/04), correspondendo a 84% da sua carteira de títulos - contra apenas 8% em dezembro de 2005. Nos últimos oito meses, aumentou em R$ 87,6 bilhões os financiamentos que o BC tomou no mercado aberto, dos quais 68% explicado por operações inferiores a duas semanas. Pelo lado fiscal, as operações compromissadas constituem uma forma de dívida pública, inclusive o BC as contabiliza como dívida mobiliária em mercado. As duas somam 56% do PIB ao fim de abril, um incremento de 3,1 pontos do produto só neste ano. Pelo lado financeiro, representa mais um traço da dependência do mercado financeiro em relação ao Estado. A inflação alta acabou, mas a "zeragem automática" não: ao fim de cada dia, os bancos fecham posições com o BC, aplicando as "sobras" em títulos públicos, com risco zero e juros altos. Enquanto tais operações continuam em 13,5% do PIB tem-se uma indicação do tamanho da aversão ao risco dos bancos e de sua preferência pela liquidez.

- R$ 99,8 bilhões foi a injeção de liquidez que o BC promoveu via redução de compulsórios para que o mercado financeiro pudesse enfrentar a crise internacional. Sendo que R$ 82,8 bilhões era quanto o mesmo BC tomava de recursos do mercado por meio daquelas operações compromissadas ao final de abril. Contraditoriamente, o próprio Banco Central esteriliza, na outra ponta, a expansão da liquidez por ele efetuada.

Exaltamos um sistema bancário que passa imune à crise global, mas empresta pouco e com juros abusivos e não consegue dispor de um mercado interbancário capaz de prover fundos privados que reduzissem as pressões sobre o BC para zerar enormes posições todo final de dia. Isso contamina a gestão da dívida pública e, em decorrência, a credibilidade da própria política fiscal. Enquanto a política monetária segue "empoçando" a liquidez, a administração da dívida do Tesouro acaba sendo, indiretamente, repassada pelo Ministério da Fazenda ao BC.

A magnitude das operações compromissadas no conjunto da dívida mobiliária federal demonstra que o país não tem uma política de administração dos passivos estatais e de construção de estruturas institucionalmente sólidas para a gestão dos diversos componentes do endividamento público. Ao contrário, a meta de redução da dívida líquida sobre o PIB parece ter obnubilado os condutores da política econômica de buscarem a reconstrução dos padrões de financiamento do Estado brasileiro. Vale ressaltar que a expansão das operações compromissadas é relativamente normal em períodos de crise, mas sua magnitude revela um descontrole da dívida e falta de harmonia entre políticas e instituições.

Por fim, mas não menos importante, é fundamental apontar os riscos que as bilionárias relações entre Tesouro e BC podem colocar para a credibilidade da política fiscal. É preocupante que resultados do BC, depositados no caixa do Tesouro, se transformem em superávit financeiro e, daí, em nova fonte de recursos fiscais, ou seja, uma forma mais sofisticada de se emitir moeda para custear o gasto público.

Debater mais e publicamente estas políticas e instituições seria um bom passo para não ficar preso ao dogma do Banco Central independente, quando nem perguntamos de quem, quanto menos se o Tesouro também não precisaria ser independente.

José Roberto Afonso é economista do BNDES, doutorando no IE/Unicamp

Geraldo Biasoto Junior é professor do IE/Unicamp e diretor executivo da Fundap.