Título: Os privilegiados estão na mira
Autor: Valenti, Graziella
Fonte: Valor Econômico, 15/06/2009, EU& Investimentos, p. D1

O desenvolvimento do mercado de ações brasileiro nos últimos é considerado um dos pilares para a sustentação da economia. No entanto, não há almoço grátis. Estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostra que uma das piores pragas dos mercados no mundo todo, a negociação indevida de ações em bolsa de posse de informações privilegiadas, vem acompanhando essa expansão.

Nos últimos dez anos, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) julgou 17 processos administrativos por uso de informação privilegiada, o chamado "insider trading", e firmou 15 termos de compromissos. São, portanto, 32 ocorrências avaliadas pelo regulador. Desse volume, quase a metade, 14, está concentrada nos últimos dois anos - 2008 e até maio deste ano.

O uso indevido de informação privilegiada é delito administrativo há 33 anos, desde a criação da Lei das Sociedades por Ações, em 1976. Ou seja, alvo punições pelo fiscalizador do mercado, a CVM, como multas e inabilitação profissional. Mas a partir de março de 2002 tornou-se também crime, portanto, conduta alvo de ação penal que pode resultar na prisão do indivíduo, de um a cinco anos.

Segundo Eli Loria, diretor da CVM, o "insider" foi elevado a crime porque atinge em cheio a credibilidade do mercado. "Sem confiança, o mercado não existe."

Na opinião da professora da FGV Viviane Müller Prado, autora do estudo, o aumento dos casos averiguados pela CVM são reflexo da própria sofisticação e crescimento do mercado. Segundo ela, a maioria deles está relacionada a operações de fusões e aquisições ou reestruturações societárias. Assim, um volume maior de transações abre espaço para um número mais alto de ocorrências. "Poucos são os casos relacionados a contratos operacionais, por exemplo."

O levantamento apontou ainda um aumento no uso de termos de compromisso pela CVM nesses casos. O termo é um acordo firmado entre o acusado e o regulador que antecipa o encerramento do processo, por meio de ressarcimento do acusado. O uso dessa ferramenta vem aumentando de maneira geral pela autarquia e não apenas em caso de informação privilegiada.

Dos 14 casos de uso de informação privilegiada avaliados pelo regulador de 2008 até maio deste ano, nove foram encerrados com termos de compromisso e apenas cinco foram resultado de julgamentos de processos administrativos. Considerando só no ano passado, os termos relativos a essa irregularidade representaram 22% dos acordos feitos pelo regulador. De 2000 a 2007, foram 12 julgamentos de processos e somente seis são termos de compromisso.

Segundo Loria, da CVM, o aumento na prática dos acordos se deve, em primeiro lugar, a elevação do número de processos. Além disso, trata-se de um meio rápido de oferecer resposta. Ele explicou que não há padronização para esses acordos. "Não podemos padronizar muito. O mercado se ajusta e coloca as penas nas contas da decisão de cometer ou não a irregularidade e aí perde o efeito."

Apesar do grande número de casos avaliados pela CVM apenas um deles foi para a esfera penal até agora, para estrear a lei de 2002. No começo de maio, o Ministério Público Federal (MPF), órgão competente para isso, ofereceu denúncia contra os três acusados da prática de "insider" no episódio da oferta hostil lançada pela Sadia na tentativa de adquirir a Perdigão.

Alexandre Pinheiro dos Santos, chefe da Procuradoria Especializada da CVM, explica que devem aumentar as ações penais.

Ele destacou que o estudo da FGV reúne os processos julgados e os termos já firmados nos últimos anos. Assim, considerando o período de trâmite do regulador, diversos dos processos e dos acordos desse intervalo podem se referir a prática do "insider trading" antes dela se tornar crime. Nessa situação, não há como se instalar a ação penal, para prisão dos culpados.

Já para os casos ocorridos depois de março de 2002, sempre que a CVM se depara com indícios substanciais da existência do crime, informa o MP, para o órgão possa iniciar os trabalhos internos com os quais o regulador pode cooperar. "Isso independe do momento processual." Assim, essa comunicação pode ocorrer tanto na fase de investigação como na de proposição de abertura de um processo administrativo.

O procurador da República Rodrigo de Grandis, autor da denúncia no caso da Sadia, destacou que a existência de um termo de compromisso firmado entre os indiciados e a CVM não elimina a investigação do crime, para a abertura de uma ação penal. Ele lembra que para crimes não existe a possibilidade de acordo. Tal alternativa é oferecida apenas em ações civis e administrativas, ou seja, que não possa haver a prisão dos acusados. Para De Grandis, seria positivo que o documento de assinatura do termo contivesse esse alerta, para evitar dúvidas.

Existe confusão sobre o tema e há quem pense que a assinatura de um termo na CVM encerre a investigação criminal. Há ainda discussão recorrente se o acordo enfraquece a acusação, na esfera penal, pelo fato de o processo do regulador não ter seguido adiante e apontado a existência de culpa.

Para José Marcelo Proença, advogado e professor da Universidade de São Paulo (USP), a proposição e assinatura de um termo de compromisso na CVM por um acusado de insider "mais configura um indício de reconhecimento de culpa". Na opinião do especialista, esse raciocínio é ainda mais evidente nos casos em que os valores acordados no termo são expressivos.

O levantamento da FGV corrobora o raciocínio do professor. Na maioria dos termos, as multas acordadas superaram R$ 200 mil. No caso envolvendo a venda do controle da Suzano Petroquímica, em 2007, por exemplo, foi assinado um termo com valor de R$ 2,2 milhões - o maior relativo a uma investigação desse tipo. Os valores nos termos são substancialmente maiores do que as penas aplicadas em julgamento de processos. Houve apenas duas multas maiores que R$ 200 mil fruto de processos.

A CVM tem adotado diversas iniciativas para aprimorar a investigação de casos de "insider" e para coibir o problema, como o acordo para atuação conjunta com o MPF, assinado em 2008. Além disso, em breve adotará uma ferramenta eletrônica mais avançada para detectar anormalidades no mercado. Mas não há uma data prevista para essa atualização de sistemas.