Título: Algo de podre na bolsa
Autor: Nunes, Vicente
Fonte: Correio Braziliense, 16/03/2010, Economia, p. 10

Negociações envolvendo papéis de empresas falidas, com patrimônio negativo ou prejuízos acumulados podem criar uma bolha indesejada. CVM e BM&FBovespa iniciaram investigações

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e aBM&FBovespa estão rastreando uma onda especulativa com ações deempresas sem tradição de negócios no mercado várias delas, emprocesso falimentar ou em recuperação judicial. Neste momento, a CVMestá com 26 investigações em andamento para apurar movimentaçõesatípicas de preços. Outros 10 processos foram concluídos entre janeiroe fevereiro deste ano, dos quais, em dois, a autarquia que regula efiscaliza o mercado de capitais constatou irregularidades e abriuinquéritos administrativos. Na bolsa de valores, há cinco processos emandamento.

Os órgãos fiscalizadores precisam agir rápido, ou esse tipo deoperação vai minar a credibilidade do mercado, disse Carlos AntonioMagalhães, diretor da Associação dos Analistas e Profissionais deInvestimentos do Mercado (Apimec). Há ações subindo 40% ou 50% emapenas um dia, mesmo com as empresas sem qualquer perspectiva derecuperação, acrescentou. É o caso da Cobrasma, companhia fabricantede vagões de trens que ruiu nos anos 1990 e, segundo os demonstrativosfinanceiros do primeiro semestre de 2009, estava com patrimônio líquidonegativo de mais de R$ 3 milhões.

Depois de meses de ausência no pregão da BM&FBovespa, os papéisda empresa surgiram como estrelas. Entre 3 e 18 de fevereiro último,foram realizados 2.120 negócios só com as ações preferenciais (semdireito a votos nas decisões da companhia), movimentando R$ 16,6milhões. Tanto a CVM quanto a bolsa questionaram o diretor de Relaçõescom os Investidores da Cobrasma, Luiz Eulálio Bueno Vidigal, sobre oporquê do interesse repentino do mercado pelas ações da empresa. Eledisse desconhecer o assunto. E frisou: As nossas atividades fabrisestão encerradas desde 1997, em função de sérias dificuldadesfinanceiras até a presente data.

Vista grossa Com base nessa resposta, Demétrius Borel Lucindo, economista eespecialista em bolsa de valores, questionou: Como podem a CVM e aBM&FBovespa deixar que empresas falidas, com patrimônio negativo eprejuízos acumulados ao longo de anos, ainda tenham as suas açõesnegociadas no mercado? Para ele, ao fazerem vista grossa, os órgãosreguladores e fiscalizadores só estimulam a manipulação de preços.

Lucindo vai além. A seu ver, essa onda de negócios com empresaspodres, sem receitas, foi estimulada pelo governo Lula, ao insuflarrumores de que a extinta Telebrás seria reativada. As ações da estatal,sem receita há mais de 10 anos, já subiram mais de 35.000% desde 2003,levando a CVM a abrir um inquérito para apurar responsabilidades. Omovimento contaminou os papéis da DTecon Direct, que, somente em 17 defevereiro deste ano, registrou oscilação de 37% baseada na aposta deque a empresa ganhará com a recuperação da Telebrás. Outra companhiaque seria ajudada pelo governo a sair da recuperação extrajudicial, aGradiente, computou alta de quase 30% em 3 de março último, sem nenhumajustificativa concreta para tal.

Investidor équem julga

Apesar da atenção redobrada que vem dando àsnegociações com papéis de décima categoria como classificam osoperadores , o superintendente de Relações com o Mercado eIntermediários da CVM, Waldir de Jesus Nobre, afirmou que o fato de umaempresa estar em concordata ou em recuperação judicial não é motivopara que as transações com suas ações sejam suspensas. Não nos cabejulgar se o negócio é bom ou ruim. O importante é que haja informaçõessobre a situação das companhias, para que os investidores possamdefinir se vão ou não fechar negócio, se realmente vale a pena aplicarnaquele negócio a poupança que está sendo feita para a compra de umimóvel, por exemplo, ressaltou. No seu entender, proibir os negóciosseria como fechar a porta de saída dos investidores que detêm essespapéis.

O diretor de Autorregulação da BM&FBovespa Supervisão deMercado (BSM), Luís Gustavo da Matta Machado, é da mesma opinião. Masele garantiu que a bolsa de valores vem aprimorando seus sistemas decontrole para identificar irregularidades. Desde julho de 2009, ainstituição está usando um programa de computador que ampliousignificativamente o raio de visão do mercado. Antes desse software, decada grupo de 5 mil operações analisadas, a BM&FBovespa chegava atrês com suspeitas de ilícitos. Agora, dentro do mesmo grupo, ocruzamento de dados consegue pegar 11 operações suspeitas.

Essa análise mais ampla, acrescentou Matta Machado, é feitaindependentemente dos mecanismos de controle usados diariamente pelabolsa para coibir abusos. Nos negócios com ações de companhias semliquidez, os preços não podem variar para cima ou para baixo mais doque 10% entre uma transação e outra. Se esse limite foi atingido, aBM&FBovespa suspende as operações e abre um leilão dos papéisofertados para que todos os interessados do mercado possam dar os seuslances.

Tudo o que identificamos de suspeito no mercado é comunicado àCVM. Mas abrimos nossos próprios processos administrativos. Para se teruma ideia, em 2009, arrecadamos mais de R$ 2 milhões em multas e pormeio de termos de compromisso em que os acusados prometem corrigir asirregularidades para que os processos sejam encerrados, contou odiretor da BSM. A despeito de todo o rigor da bolsa e da CVM, MattaMachado reconheceu que o mercado está cheio de arapucas, que só serãodribladas por meio da boa educação dos investidores.

Riscos da internet

Os abusos são grandes. Mesmo com a CaféSolúvel Brasília tendo sido acionada duas vezes pela CVM e pela bolsade valores no início deste mês por causa de movimentos atípicos depreços, as ações da empresa subiram 40,7% apenas na última sexta-feira,para R$ 5,98. Infelizmente, isso comprova que os manipuladores nãoestão nem aí para as autoridades, pois sabem que não serão pegos,disse Carlos Antonio Magalhães, diretor da Associação dos Analistas eProfissionais de Investimentos do Mercado (Apimec).São gruposespecializados em se aproveitar do desconhecimento de investidores, quese rendem facilmente à promessa de ganho fácil, complementou.

Normalmente, ressaltou o economista Demétrius Borel Lucindo, essesnegócios começam por meio de sites de relacionamentos e blogs nainternet que se dizem especializados no mercado de ações. Espalham-serumores, notícias falsas sobre as empresas, garantindo que elas vão sevalorizar muito. E como os preços de muitas ações estão definidos emcentavos, o olho de todo mundo cresce, pois não é preciso desembolsarmuito, frisou. O serviço sujo desses sites e blogs fica facilitadoporque eles bloqueiam qualquer tentativa de se fazer um alerta contraas operações. Só liberam o que lhes interessa. Por isso, 99% dosinvestidores arcam com prejuízos, assegurou.

Waldir Nobre, superintendente da CVM, admitiu o perigo das dicasoriundas de sites ditos especializados. A autarquia, inclusive, jáinvestigou vários deles, com base em denúncias recebidas deinvestidores lesados. O problema, contou ele, é a dificuldade de sejuntarem as provas necessárias para punir os responsáveis. Morremos napraia em vários casos, pois os computadores originais das dicasestavam em cibercafés, relatou.

Mas há, também, corretores e agentes autônomos de mercado, querepresentam instituições financeiras, incentivando a corrida por papéisde empresas podres. O que interessa para eles é gerar negócios, pois oganho vem de um percentual das operações, disse Carlos Magalhães. Oresultado disso, no seu entender, é a destruição da credibilidade deprofissionais sérios, que se recusam a indicais ações dessas companhiasa seus clientes, alegando o risco das operações, mas, dois dias depois,os preços sobem 50%. O conselho sério, ético, vai pelo ralo,concluiu.